quinta-feira, 17 de junho de 2010

"O Desprezo" de Godard*


i

O Desprezo (Le Mepris) filme de Jean-Luc Godard, de 1963, conta a história da produção de um filme sobre a Odisséia de Homero. Paul é um roteirista recém contratado pelo produtor americano Jerry Prokosch para fazer o roteiro da Odisséia, cujo diretor Fritz Lang apresenta-se refratário às injunções da produção. Paul tende a aceitar a feitura do roteiro, no entanto, sua esposa Camille passa a desprezá-lo sem um motivo óbvio aparente. As discussões intermináveis de Paul com Camille, seguido dos flertes de Prokosch com Camille, levam ao fim do casamento de Paul e sua recusa em roteirizar o filme. Por fim, Camille segue com Prokosch a Roma e no caminho ocorre um acidente no qual ambos morrem.

Essa a sinopse geral de um filme complexo e crítico aos procedimentos de se fazer filmes. Um meta-filme hermético que nega impiedosamente através de uma crítica contundente o modelo hollywoodiano – mas não apenas – de se fazer filmes. Iremos nos ater a alguns detalhes que consideramos reveladores da essência do filme defendendo a tese – razoavelmente arriscada – de que se trata de um filme que busca recuperar a dimensão trágica da vida humana. Além disso, cotejaremos passagens do capítulo “A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” do livro Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer com vistas a pôr à prova as teses dos autores, sobretudo as que insistem em considerar o cinema como um meio essencialmente alienante e incapaz de provocar quaisquer reflexões.

ii

Prokosch é um produtor norte-americano que tem como objetivo criar um filme sobre a Odisséia de Homero. Profissão, nacionalidade e objetivo fazem de Prokosch o tipo perfeito do produtor inescrupuloso que deseja ganhar dinheiro por todos os meios, nem que seja necessário caprichar nas cenas de nudez e transformar Ulisses em um personagem contemporâneo a fim de provocar identificação com o público. Sabe que a matéria de sua profissão são as emoções, vide sua aparição inicial na qual diz que com a venda de estúdios de cinema são vendidas emoções. Tal como o ferreiro que molda ferro, Prokosch molda emoções.

Prokosch tem confiança de que Paul aceitará ser o roteirista de seu filme pela motivação básica que move todos os “agentes culturais”: dinheiro. Seu cinismo é revelador da posição que ocupa na indústria cultural. No momento de contratar Paul, diz: “Quando ouço a palavra ‘cultura’ puxo o talão de cheques”, o que horroriza Fritz Lang com o evidente paralelo com os nazistas.

Prokosch é um elemento fundamental do filme, na medida em que, tal como a indústria cultural, é o elemento que aglutina os diferentes agentes em torno de uma determinada produção.

O delineamento geral do filme, e que lhe confere um sentido trágico, é quando da exibição das imagens captadas por Lang. De antemão, Lang diz que seu filme trata do indivíduo contra suas circunstâncias, em permanente luta, na luta do homem contra os deuses. As primeiras – e mais fundamentais – imagens que mostram são de Minerva, protetora de Ulisses, e Netuno, seu inimigo mortal. A essa altura, Prokosch diz, em uma afirmação historicamente deslocada, que sabe como os deuses se sentem no que é retorquido por Lang que o corrige dizendo que foram os homens que criaram os deuses, e não o contrário.

Nessa cena estão contidos os elementos principais que emprestarão um significado mais geral para o filme. Netuno é a potência que ameaça a vida de Ulisses, protegido por Minerva. A identificação de Prokosch com os deuses é imediata, e seu papel no filme encarna mesmo essa potência descontrolada. A correção de Lang, o diretor experiente, serve também para dar conta da potência – que é o próprio cinema – que, como o fetiche da mercadoria analisado por Marx, se autonomiza em seu valor-de-troca e ganha vida. Camille, esposa de Paul, é Minerva e Penélope, esposa de Ulisses, que por sua vez é análogo a Paul.

Logo à saída da sala de projeção, aparece Camille que recebe um convite de Prokosch para que tomem uma bebida juntos. Camille, com a anuência de Paul, vai à frente com Prokosch. Paul vai logo atrás. Nessa altura, uma imagem de Poseidon aparece, em representação do inimigo. No local, claramente Prokosch flerta com Camille, e Paul, por sua vez, em seguida, flerta com a assistente de Prokosch. Camille passa a desprezar Paul. Prokosch ainda oferece a Paul um livro de história romana para que lhe ajude na redação do roteiro, o que faz Paul indagar da legitimidade de um livro romano para uma obra grega. A alusão ao império romano enquanto conquistador da cultura grega e do império americano conquistador da cultura universal ganha relevo.

Paul e Camille voltam para seu apartamento e lá tem uma grande discussão. Paul não compreende o porquê do desprezo e Camille não o explica. Paul sai de casa armado. Ambos vão para uma audição relativa ao filme. Lá são reiterados os convites já feitos para que Paul e Camille acompanhem Prokosch à ilha de Capri. Camille pergunta a Lang se ele os acompanha a Capri que responde citando Bertolt Brecht, no sentido de que vai a Capri como quem vai para ganhar seu pão, e que essa compra e venda é justamente o que caracteriza Hollywood. Camille não havia ainda decidido se ia a Capri ou não, o que leva Paul a dizer à Camille que não quer forçar ela a ir. Ela diz que não é ele que o está forçando, mas sim a vida – o que reforça a ideia de que há um elemento trágico, pré-figurado, que impele as ações. No mesmo sentido, em auto-identificação, já em Capri, Paul diz estar de acordo com a teoria de Prokosch segundo a qual a Odisséia é a história de um homem cuja mulher não mais o quer, ao que Camille responde que está certa de que as coisas não se passam assim.

Novamente Paul e Camille se separam, ela acompanhando Prokosch, seguido de uma imagem de Poseidon. Em meio às filmagens, Fritz Lang diz que Prokosch é um ditador e que acha tolice mudar o caráter de Ulisses, que este não se trata de um neurótico moderno, mas sim de um homem simples e audaz. Paul diz que acha interessante a ideia de mostrar Ulisses como já infeliz com Penélope, a prova disso é não voltar para casa senão após 10 anos. Lang discorda. Paul insiste dizendo que Tróia foi pretexto para Ulisses, o que Lang responde que se é assim não haveria razão para matar os pretendentes de Penélope. Paul diz que Penélope era mulher simples e que ao perceber a conduta de Ulisses deixou de amá-lo, o que o fez matar os pretendentes dela. É evidente a relação entre isso e os personagens e o que justifica Paul ir armado à ilha.

Como para cumprir sua pré-figuração, Camille acena da casa para Paul que vai em sua direção. Ao perceber isso, Camille irá sem hesitações encontrar Prokosch. Paul flagra Camille e Prokosch se beijando. Após isso, todos se encontram em uma sala e Paul diz que não irá fazer o roteiro. Diz que é um dramaturgo e que acabaria fazendo o roteiro apenas por dinheiro. Diz que no mundo atual deve-se aceitar a imposição dos outros a fim de sobreviver. Prokosch redargúi que o mundo de Homero não mais existe.

Paul volta a falar em privado com Camille que diz que ainda acha que ele fará o roteiro. Ele diz que se fizesse seria por ela e o apartamento. Arremata dizendo que ela deve escolher se ele fará ou não. Ela diz para fazer o roteiro e se nega a dizer por que o despreza. Ele diz que rejeitou fazer o roteiro para que ela parasse de desprezá-lo. Ele pergunta por que ela não parou de desprezá-lo e ela diz que é por causa dele mesmo – em suma, sua resistência à potência da indústria cultural. Ela parte para Roma com Prokosch e morrem em acidente.

Em nossa interpretação, essa exposição trágica da relação de Camille com Paul e com o todo social era o único modo de Godard mostrar de modo consistente a desarmonia entre indivíduo e sociedade. Mostrar que a única possibilidade de impedir que Paul escrevesse o roteiro e acabasse por vender-se à indústria era a resistência de Camille com seu desprezo. Camille resistiu por Paul e sabia que esse ato teria implicações necessárias.

iii

Adorno e Horkheimer propõe uma teoria da cultura de massas produzida pela indústria cultural, ao menos no texto canônico presente na Dialética do Esclarecimento, um tanto inflexível, impermeável à novos fenômenos e, porque não dizer, datada. Não nos importa que essa concepção tenha sido modificada em maior ou menor grau ao longo dos anos, o que é objeto para outro texto, mas sim pensar se suas reflexões teriam alguma aplicabilidade para analisar um filme comoO Desprezo.

Em primeiro lugar, cabe notar que a Adorno e Horkheimer pretendem uma teoria demasiadamente totalizante1 e que consiste no pressuposto de uma economia monopolista2, o que, se é evidente nos Estados Unidos, possui uma validade limitada em outras partes do globo. A partir disso, é formulado um diagnóstico que postula que desde a produção do artigo cultural até a fruição há continuidade férrea, como se a idealização dos produtores se impusesse aos consumidores3.

Apenas uma teoria dessa natureza, permitiria afirmações do seguinte gênero, a respeito da indústria cultural: “Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada”4. É pouco plausível crer que uma oração tão categórica possa valer ao conjunto dos produtos culturais – no limite, caberia a questão, mais fundamental, se é possível pensar os produtos culturais em um grau de homogeneidade tão grande quanto se propõe os autores.

Além disso, tudo, consoante com o que defendemos acima, não parece razoável supor que para o conjunto da indústria cultural:

O trágico é reduzido à ameaça de destruição de quem não coopera, ao passo que seu sentido paradoxal consistia outrora resistência desesperada da ameaça mítica5.

Ao contrário, em O Desprezo é apresentada uma situação na qual se opera justamente uma resistência à potência – em larga medida mítica – da indústria cultural, através de inúmeros expedientes – o tipo do produtor americano, a participação de Fritz Lang, a resistência de Camille etc. Portanto, não nos parece, sem uma melhor qualificação, que as categorias utilizadas para definir a indústria cultural dos anos 40, ainda incipiente e, sobretudo, localizada geograficamente nos Estados Unidos, possam ser indiscriminadamente utilizadas em relação à enorme variedade de produtos culturais.


[1] “O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto”, Dialética do Esclarecimento (doravante, citado como DA), p. 99.

[2] “Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica [...]”, DA, p. 100.

[3] Notadamente através da noção de “esquematismo”: “O que Horkheimer e Adorno fazem em sua crítica é uma apropriação livre do conceito de esquematismo, sugerindo que, na medida em que a indústria cultural dirige a percepção dos seus clientes, fornecendo-lhes ‘chaves’ de interpretação para o que eles percebem, ela ‘expropria’ uma capacidade que, originariamente, estava circunscrita à subjetividade dos indivíduos”, DUARTE, Rodrigo, A Indústria Cultural Hoje, Boitempo Editorial, “Indústria Cultural Hoje”, p. 103.

[4] DA, p. 113.

[5] DA, p. 125.


* trabalho de final de curso da disciplina Tópicos Especiais em Estética ministrada no primeiro semestre de 2010 no departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná pelo profº Dr. André Macedo Duarte.

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