A chegada ao poder da direção do movimento operário que enfrentou a ditadura militar e revivificou as instituições democráticas brasileiras nos anos 1980 coloca desafios para o movimento sindical. Entre eles, romper com a burocratização e o contínuo afastamento das direções em relação às bases
por Ruy Braga
Refletir sobre o papel desempenhado pelo sindicalismo na vida política brasileira contemporânea implica, na realidade, emaranhar-se nas tramas de um desconcertante paradoxo. Afinal, a histórica direção sindical daquele grupo operário que balançou as estruturas da ditadura militar nos anos 1970, e revivificou as instituições democráticas brasileiras ao longo dos anos 1980, governa hoje o país com altos índices de aprovação popular. Naturalmente, seria de se esperar que o incontestável sucesso dessa burocracia sindical coroasse uma realidade vertebrada pelo prestígio simbólico, político e social dos trabalhadores. Contudo, após quase duas décadas de hegemonia neoliberal, a classe trabalhadora brasileira aproximou-se daquela condição (sub)proletária, socialmentedesacreditada, que o jovem Engels encontrara no ano de 1842 em Manchester.
Sólidos indícios desse paradoxo encontram-se presentes no realinhamento eleitoral que garantiu a última vitória de Lula. Há pouco, ao comparar pesquisas eleitorais de 2002 com as de 2006, André Singer argumentou de forma convincente que a emergência do “lulismo” apoia-se na aproximação de eleitores de baixíssima renda – isto é, aqueles que recebem entre um e dois salários mínimos – do programa político representado por Lula, enquanto que, ao mesmo tempo, o atual presidente teria, no bojo do escândalo do “mensalão”, perdido a aprovação de parcela significativa das camadas médias urbanas que o sufragaram em 2002.1
A esta importante constatação, Singer adicionou o argumento segundo o qual as bases eleitorais do lulismo e do petismo teriam se desconectado em 2006, na medida em que Lula se saiu melhor nos estados mais pobres enquanto a votação da bancada federal do PT manteve-se associada aos estados mais ricos da federação. Acrescentaria apenas que a ascensão hegemônica de um lulismo eleitoralmente dependente do subproletariado brasileiro decorre, na realidade, do desmanche burocrático do petismo, e que as razões disso são conhecidas e enlaçam processos econômicos, políticos e simbólicos.
No Brasil, a década de 1990 foi traspassada pela reestruturação das empresas, pelas privatizações, pela crise do sindicalismo combativo e pelo desmanche burocrático do petismo. As transformações produtivas e as privatizações incrementaram o desemprego e degradaram o ambiente laboral, desestruturando ainda mais nosso, desde sempre combalido, mercado de trabalho. O aumento da concorrência entre os trabalhadores foi acompanhado pela intensificação dos ritmos produtivos e pela multiplicação das formas de contratação de força de trabalho. O antigo sistema de solidariedade fordista sucumbiu diante da precarização do emprego, e o sindicalismo militante e combativo, historicamente associado a esse sistema de solidariedade, entrou em crise, acentuando a burocratização sindical e promovendo um contínuo afastamento, rumo aos píncaros do aparato de Estado, das direções em relação às bases.
A burocracia sindical lulista ampliou essas tendências ao conquistar o governo federal e conservar a essência da política econômica anterior. Em seguida, o governo Lula imobilizou os movimentos sociais por meio do “transformismo” de parte expressiva de suas lideranças, colaborando ativamente com o desmanche burocrático do petismo.2 Ao absorver as forças sociais antagônicas no aparato de Estado, desmobilizando as classes subalternas e os movimentos sociais, o lulismo esvaziou todo o conteúdo crítico presente na longa “era da invenção” dos anos 1970-1980. O efeito politicamente regressivo, antevisto por Francisco de Oliveira e explorado analiticamente pela equipe de pesquisadores do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP), consiste exatamente nisso: sob Lula, a política afastou-se dos embates hegemônicos travados pelas classes sociais antagônicas, refugiando-se na sonolenta e desinteressante rotina dos gabinetes, ainda que frequentados habitualmente por escândalos de corrupção.3
Eis a hipótese levantada pelo atual projeto de pesquisa do Cenedic: vitórias políticas, intelectuais e morais “dos de baixo” fortalecem “dialeticamente” as relações sociais de exploração em benefício “dos de cima”. No Brasil, décadas de luta contra a desigualdade e por uma sociedade alternativa à capitalista desaguaram na incontestável vitória de Lula em 2002. Quase que imediatamente, o governo federal racionalizou, unificou e ampliou o programa de distribuição de renda conhecido como “Bolsa Família”, transformando a luta social contra a miséria e a desigualdade em um problema de gestão das políticas públicas.
Jogando no campo de seu adversário eleitoral, isto é, no campo da instrumentalização da pobreza e da gestão burocrática dos conflitos sociais, o atual governo soube derrotar o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), mas ao preço da despolitização generalizada das lutas sociais.
Já tendo refletido a respeito do “transformismo” da burocracia sindical lulista em seu influente ensaio O ornitorrinco4, não foi difícil para Oliveira perceber o “sequestro” dos movimentos sociais pelo “Estado integral” brasileiro – os fundos de pensão das estatais aí incluídos. Ao praticamente desaparecerem da pauta política reivindicativa nacional, exceção feita aos valentes acampados do MST, os movimentos sociais, tendo o outrora poderoso movimento sindical “cutista” na vanguarda (do atraso), salgaram o terreno para uma oposição de esquerda autêntica ao governo, quase anulando o antagonista histórico e encurralando os conflitos sociais no plano cinzento da política dos gabinetes. Talvez o processo de reorganização do sindicalismo combativo, atualmente em curso no país, aponte para um futuro menos sombrio nesse domínio. Veremos...
Contudo, uma coisa é certa. Se bem é verdade que o vínculo orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os fundos de pensão não foi suficiente para gerar uma “nova classe”, o argumento decisivo daquele ensaio de Oliveira mostrou-se profético: o caminho do “novo sindicalismo” na direção do regime de acumulação financeira globalizado liquidou completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras por parte daquele movimento sindical plasmado pela hegemonia lulista.5
Não poderia ser diferente, pois esta se apoia em uma forma de dominação que logrou desmobilizar os movimentos sociais, ao integrá-los às burocracias estatal e paraestatal em nome da aparente realização das bandeiras históricas desses mesmos movimentos, que passaram a consentir ativamente com a mais desavergonhada exploração, dirigida pelo regime de acumulação financeira globalizado.
Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e Diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP).
1 André Singer, “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, Novos Estudos, nº 85, nov. 2009, pp. 83-102.
2 Sinteticamente, o filósofo marxista italiano Antonio Gramsci chamou de “transformismo” o processo de absorção pelas classes dominantes de elementos ativos ou grupos inteiros, tanto dos grupos aliados como dos grupos adversários.
3 Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, Piauí, nº 4, Rio de Janeiro/São Paulo, janeiro de 2007.
4 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista – O ornitorrinco, Boitempo, São Paulo, 2003.
5 Gramsci entendia que o “transformismo” destruía a força política das classes subalternas ao decapitar suas lideranças, desarticulando os grupos antagonistas e semeando desordem no terreno adversário.
Palavras chave: sindicalismo, governismo, classe social
Fonte: http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=683
Nenhum comentário:
Postar um comentário