terça-feira, 4 de janeiro de 2011

"Se os historiadores tiverem juízo, ele será lido como o presidente mais privatizante da história" - entrevista com Chico de Oliveira


Chico Oliveira, sociólogo aposentado da USP

Qual leitura o sr. faz dos oito anos do presidente Lula?

O balanço geral é mediano. Essa história de "nunca antes neste país" é conversa fiada. O Brasil foi a segunda economia mundial a crescer sustentadamente durante um século. Mas foi um crescimento feito sem nenhuma distribuição de renda. A gestão do presidente Lula não diminuiu desigualdade nenhuma, isso é lenda criada a partir de muita propaganda. O que houve foi uma transferência de renda a partir do governo para os estratos mais pobres. Distribuição ocorre quando existe a mudança da renda de uma classe social para outra. Nesse sentido, não houve nenhum avanço.

O sr. concorda com os que afirmam que Lula é um mito?

Sim, e como acontece em todos os casos o mito é maior do que a realidade. Ele construiu um mito poderoso devido a vários fatores, entre os quais, conta o muito o fato de ele ser de origem pobre. Até hoje o presidente é considerado um operário, mas não pega em uma ferramenta há 50 anos. Isso o ajuda a fomentar uma figura.

E o Bolsa-Família?

Nós fomos educados na ética cristã, que nos impede de sermos indiferentes à fome. Então, ninguém pode ser contra. Agora, politicamente, o programa diz que o crescimento econômico continua sendo excludente, que é preciso algo por fora do salário para dar condições de vida às pessoas. Outro fator grave é que ele é uma regressão, uma volta à política personalista, baseada no favor, algo ruim da tradição brasileira.

André Singer, cientista político e ex-assessor de Lula na Presidência, compara os anos Lula aos de Roosevelt (presidente dos EUA entre 1933 e 1945 e recuperou a economia daquele país). O senhor concorda?

Respeito muito o André como intelectual. Ele elevou o nível de debate no PT. Mas acho que há um equívoco da parte dele. Lula não pegou o País em uma grave crise. Os anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) não foram gloriosos, mas não foram de quebradeira, de jeito nenhum. Roosevelt pegou os EUA no fundo da crise. Além disso, o André se esquece de que Roosevelt acabou com o trabalhismo americano. Entre as grandes democracias do mundo, a única na qual os trabalhadores não têm um partido é a dos EUA.

O sr. vê traços autocráticos no presidente Lula?

Montado nessa popularidade, ele exagerou. O presidente esteve à beira de se tornar autoritário. Foi além dos limites. Só duas pessoas no século 20 disseram, como ele, que eram a encarnação do povo: Adolf Hitler e Joseph Stalin.

Lula e o PT chegaram ao Planalto fazendo um discurso forte contra a corrupção. O sr. se decepcionou nesse quesito?

O poder absoluto corrompe muito. O presidente do Brasil pode nomear muitos cargos. Não há partido que resista a uma coisa dessas. O PT se perdeu no poder, ficou menor do que o presidente e não consegue impor seu programa. Lula e o PT tem um estilo predatório de administrar o Estado e lidar com as finanças públicas.

Lula foi melhor do que Fernando Henrique Cardoso?

Fui muito amigo do Fernando Henrique durante 12 anos e nos afastamos quando ele virou presidente. Fui revê-lo depois que ele deixou Brasília. Sei quem ele é e já fiz essa comparação. Fernando Henrique fez muito mal ao Estado com as privatizações. Ele, com isso, quebrou a capacidade de o Estado regular a economia, quebrou alguns instrumentos construídos com o sacrifício do povo para que o Estado pudesse intervir na economia. Mas tentou avançar institucionalmente, e essa é a grande diferença entre eles. O Lula não tem uma criação institucional. A República não avançou um milímetro com Lula. O que é celebrado na gestão Lula não se transformou em regra. Getúlio Vargas (ditador e presidente do Brasil de 1930 a 1945 e presidente de 1951 a 1954), quando criou as leis trabalhistas, obrigou as empresas a seguirem as regras da nova legalidade, que significavam uma nova hegemonia. A sociedade caminha pela luta de classes dentro dos caminhos que a hegemonia cria. Não ocorreu isso com Lula.

Mas e o aumento do salário mínimo não é um avanço?

Não, é um processo da economia, nada está garantido. Se amanhã a economia der para trás, o salário mínimo que se dane, não é um avanço. O salário mínimo do Juscelino Kubitschek (presidente entre 1956 e 1961) chegou, em valores de hoje, a R$ 1.500, e caiu porque as forças do trabalho não tiveram capacidade de sustentá-lo e porque logo depois viriam os governos militares. Avanços são direitos. Para ficar na história como um estadista, não apenas como um presidente popular, Lula deveria ter transformado, por exemplo, o Bolsa-Família em legislação constitucional. Não fez reformas. O Lula não é um estadista, de jeito nenhum. Ele não é aquele que constrói instituições que significam uma nova hegemonia.

O sr. estava entre os fundadores do PT...

Isso de fundador não faz muita diferença. Muita gente estava na fundação do partido (no colégio Sion, em São Paulo, em 1980) e depois nunca mais apareceu. O que interessa é a militância, e eu fui militante.

Como o sr. acha que a era Lula ficará para a História?

Se os historiadores tiverem juízo, ele será lido como o presidente mais privatizante da história. Ele não é estatizante, isso é falso, uma lenda que a imprensa inventou e que ele usa como arma. Ele é privatizante no sentido de estar criando regras para que poucos grupos controlem a economia brasileira, usando o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) para isso. Com Lula, nós estamos entrando naquilo que a teoria marxista chamava de capitalismo monopolista de estado, do qual não há volta. Todas as vezes que essas forças crescem, as dos trabalhadores diminuem. É esse país que ele vai legar para a Dilma.

Diante da alta popularidade de Lula, o sr. se arrepende de ter saído do PT?

De jeito nenhum. Esse negócio de popularidade é como maré, vai e volta.

QUEM É

Chico de Oliveira é professor aposentado de sociologia da Universidade de São Paulo, da qual recebeu o título de professor emérito, e foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Entre seus livros, destaca-se Crítica à Razão Dualista.

Fonte: Estadão.

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