Marcelo Badaró Mattos, militante do PSOL e professor de História da UFF
Acompanho a construção do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) como interessado direto, desde o seu primeiro momento. Interessado direto porque, acompanhei a trajetória do PT, de uma posição classista e mal-definidamente socialista nos anos 1980, para um reformismo tímido nos anos 1990 e, já bem distante do partido, um explícito social-liberalismo ou neoliberalismo de terceira via com Lula da Silva na presidência. Desde 2003 ficou evidente para mim, assim como para muitos outros, que a descrença na possibilidade de partidos estratégica e organicamente comprometidos com a classe era uma das maiores ameaças para os setores mais combativos dos movimentos sociais vinculados aos trabalhadores, que resistiram aos apelos adesistas de Lula da Silva. Uma ameaça porque sua consequência é a dispersão de forças, a dificuldade da construção comum de análises do real, programas de transformação e lutas coletivas, um conjunto de fatores que só fará agravar a já grave situação de refluxo das mobilizações classistas e do projeto socialista.
Foi esse interesse que me levou ao engajamento direto na construção do partido e a uma constante reflexão crítica sobre estes primeiros anos de sua trajetória. Em todas as avaliações que tentei produzir até aqui, assinalei que a principal disputa no interior do PSOL não se dava entre as correntes A e B, mas entre duas concepções diferentes do partido e de seu projeto estratégico, decorrentes de sua origem, fundamentalmente como ruptura petista. De um lado, alinharam-se os que entenderam o PSOL como um resgate do “PT das origens”, do “projeto original” do PT, traído por Lula e a Articulação/Campo Majoritário. De outro, os que entenderam que, embora a trajetória do PT não estivesse determinada desde sua origem, muitos de seus impasses como ferramenta organizativa da classe trabalhadora, explicitados a partir da década de 1990 e exacerbados no governo Lula da Silva, decorreram de limites das suas formulações estratégicas e de sua prática política desde sua construção, no auge das lutas nos anos 1980. Por isso mesmo, este segundo campo defendeu que o PSOL necessitava constituir-se como partido de novo tipo, aprendendo com a trajetória do PT, mas para superá-la.
Através de tal análise, procurei explicar como se deu a polarização do debate programático no PSOL. Assim, tínhamos no interior do novo partido os que defenderam a retomada do Programa Democrático-Popular petista – vinculado a sua valorização do caminho institucional (na formulação original combinado às lutas sociais, mas na prática sempre distante disso) como estratégico. Daí decorreria toda a ênfase nos processos eleitorais e nos mandatos majoritários e parlamentares como canais privilegiados de atuação do partido. Por outro lado, havia também os que defenderam no interior do PSOL a necessidade de superação do Programa Democrático-Popular, avaliando seus limites reformistas quando da sua formulação, exacerbados pelo quadro atual em que o capital não se mostra disposto a concessões e o exemplo do PT já demonstrou o quanto a via institucional é capaz de fazer, no sentido de domesticar e incorporar à ordem os antigos representantes dos trabalhadores. Daí a afirmação por esse setor, da necessidade de construção de um novo programa socialista para o Brasil, em articulação com os setores mais combativos do movimento social vinculado à classe trabalhadora, pólo privilegiado de atuação do partido (sem menosprezar a necessidade de intervenção no plano institucional), para influenciar uma alteração da correlação de forças capaz de abrir espaço para um novo ciclo de lutas mais massivas.
Essa análise não deixou de levar em conta alguns outros aspectos da “herança maldita” do petismo no PSOL. Falo daqueles aspectos que dizem respeito à democracia interna e ao funcionamento do partido. Isto porque o PSOL foi fundado com base num acúmulo de críticas ao PT, que destacavam justamente a quebra da democracia interna do partido, dirigido autocraticamente pelos setores majoritários, o que culminou, inclusive, na expulsão de parlamentares que se colocaram ao lado das deliberações congressuais do partido para defender direitos dos trabalhadores (os mesmos que se uniram para fundar o PSOL). Por isso, em seus estatutos fundacionais, o partido recusou o modelo petista de partido dirigido pelo alto, de filiados que são chamados apenas para dar quórum para as instâncias partidárias, mobilizados em momentos de disputa interna através de máquinas clientelísticas dos dirigentes, tendências, mandatos. Em contraposição, propunhamo-nos a construir o PSOL como partido de militantes, nucleados, com instâncias de funcionamento regular, em que a base decide os rumos partidários. Mas, na prática dos primeiros anos do PSOL, esta proposta ainda está muito distante de se concretizar.
Nada disso é novo, e eu estou longe de ser o único a tê-lo dito. Há porém, muito mais que isso ocorrendo no PSOL desde o seu Segundo Congresso, realizado no segundo semestre do ano passado. Naquela ocasião instalou-se uma dupla crise no interior do partido. Seu primeiro núcleo foi a firme disposição de Heloísa Helena de recusar sua indicação – que àquela altura não encontraria concorrentes – para a candidatura presidencial, em nome de um projeto pessoal de disputa de uma vaga no Senado por Alagoas. Para um partido com forte pendor eleitoralista, como o PSOL se mostrou até aqui, o vazio deixado por essa posição de Heloísa Helena era enorme, pois a expectativa era de que sua candidatura garantisse o coeficiente de legenda mínimo para manter ou talvez ampliar minimamente as bancadas federal e estaduais. Uma expectativa que contagiava a maioria de suas correntes internas e até mesmo aliados, como o PSTU, que defendeu ardorosamente a candidatura de Heloísa, mesmo tendo criticado duramente a “flexibilidade” de seu discurso e programa apresentada quando da disputa presidencial anterior em 2006.
A outra ponta da crise foi a recomposição das forças internas que, ocorrendo independentemente do posicionamento de Heloísa Helena, levou a uma redefinição não apenas dos setores e tendências a conformar o setor majoritário eleito para direção do partido naquele congresso, como também da sua própria dinâmica de funcionamento. Isto porque o divisor de águas para a composição das chapas no Congresso não foi o das elaborações programáticas contidas nas teses em discussão, mas a questão do método de fazer política e da dinâmica de funcionamento do partido. Chantagens, retiradas de bancadas, ameaças as mais variadas levaram ao isolamento os grupos mais próximos à Heloísa Helena (MTL e MES), que até então haviam composto com a APS (corrente interna com maior número de militantes) o setor majoritário na direção do partido.
As oscilações que se sucederam no debate interno sobre a candidatura presidencial como a desastrada discussão sobre o apoio a Marina Silva e os adiamentos da conferência eleitoral, abalaram mas não significaram uma quebra desse realinhamento de forças, que acabou por se consubstanciar num apoio da maioria do partido à pré-candidatura de Plínio de Arruda Sampaio. O debate interno entre os pré-candidatos demonstrou que a polarização interna do partido mantinha-se bastante aguda, embora projetada para outras dimensões. Em grandes linhas, os três pré-candidatos demonstraram uma visão comum de que o quadro atual é de uma correlação de forças bastante desfavorável à classe trabalhadora e que as eleições presidenciais de 2010 serão marcadas pela falsa polarização entre Dilma e Serra, em tudo interessante para que a classe dominante não ponha em discussão as grandes questões nacionais. No entanto, dessa visão comum, tiravam conclusões em tudo opostas. A pré-candidatura de Martiniano Cavalcanti defendeu em suas manifestações públicas a idéia de que diante de tal correlação de forças desfavorável, o caminho a seguir era o de rebaixamento dos discursos e programas eleitorais ao nível do que “não chocasse” a população, ou seja, evitar o “propagandismo” socialista. No pólo oposto, as pré-candidaturas de Babá e Plínio Sampaio defenderam a necessidade de uma campanha centrada na defesa da alternativa socialista, apresentando propostas concretas, mas que politizassem o debate em outra direção, como caminho para instaurar um diálogo de novo tipo com setores da classe trabalhadora, acumulando para inverter a correlação de forças, não dobrando-se a ela.
Findo o período dos debates, realizaram-se as plenárias e conferências estaduais e nessa etapa o grau de permanência da “herança maldita” do PT mostrou-se de forma tão crítica que surpreendeu até àqueles que como eu avaliavam como decisivo o modo como o passado petista vem assombrando o PSOL. Vivemos recentemente uma série de episódios deploráveis: começando pelas fraudes em plenárias, mas se seguindo de movimentos de boicote e chantagem às instâncias de direção partidária por parte dos setores mais próximos a Heloísa Helena e culminando com a retirada arbitrária do sítio eletrônico do partido do ar, somada à tentativa de impedir o deslocamento dos membros da Direção Nacional para uma reunião estatutariamente convocada. Qual a face da herança petista revelada por esses episódios? A meu juízo, a da degeneração política de lideranças cujo desespero pelo controle da máquina partidária se mostrou maior que o compromisso com os princípios exigidos pela classe trabalhadora dos militantes comprometidos com a transformação socialista. Algo que se pode explicar por deficiências graves de formação teórica, ou pelas pressões objetivas de um quadro de refluxo, ou por uma combinação desses com outros fatores, mas sem jamais esquecer o elemento de desrespeito à ética política socialista, justamente por parte daqueles que mais se arvoraram em críticos morais dos petistas, cujas práticas partidárias agora teimam em reproduzir por completo.
Quais são as consequências dessa situação? Escrevo às vésperas da Conferência Eleitoral que vai definir a candidatura do PSOL, a política de alianças e as linhas gerais do programa de campanha. Não posso predizer o futuro. Mas, penso que temos que estar preparados para pelo menos duas consequencias dessa crise do PSOL.
A primeira diz respeito ao dano que esta situação traz não apenas à imagem do partido junto aos seus militantes e aos militantes dos outros partidos e, especialmente, dos movimentos reais da classe trabalhadora em que atuamos. Se já era difícil convencer sobre a necessidade dos partidos e a novidade do PSOL, que dirá agora. Me parece que só há uma forma de lidar com isso: demonstrando maturidade na resolução dos problemas internos e discutindo-os aberta e francamente com a militância dos movimentos, de forma a demonstrar que, se nossos problemas repetem velhos fantasmas do petismo, nós havemos de saber encontrar novas soluções que nos diferenciem e exorcizem tais heranças.
A segunda diz respeito ao necessário aprofundamento do rearranjo interno, que só poderá ter bom termo com uma retomada do projeto original de um partido construído por militantes, nucleados e representados em instâncias partidárias de funcionamento regular, comprometidas com as deliberações de base. O quadro aberto pela crise atual imporá às forças que hoje atuam no PSOL um claro posicionamento em relação a esse modelo de funcionamento democrático do partido. Dele decorrerá a possível e necessária superação da polarização no debate programático por uma nova síntese, politicamente mais consistente e melhor ancorada no debate com as forças vivas da classe trabalhadora.
Enfrentar a contento esses dois desafios pode, por outro lado, levar-nos a exercitar um potencial em que o partido pouco apostou nesses seus primeiros anos de funcionamento. A começar pelo momento da campanha eleitoral, que é o que nos está mais próximo, transformando a candidatura Plínio em um instrumento efetivo de construção comum de um programa socialista para o Brasil, com os setores mais combativos dos movimentos sociais – os que se empenham na criação de uma nova central, os que são criminalizados, no campo e na cidade, por que não se incorporaram à ordem e resistem lutando. Um instrumento também da retomada da Frente de Esquerda, já tão dificultada pelas crises internas do PSOL, agora mais necessária do que nunca, para evitar passar à classe a imagem de uma esquerda socialista tão fragmentada que se torna completamente incapaz de influenciar o jogo político. E, principalmente, em instrumento para abrir o diálogo com amplos setores da classe em torno de alternativas radicais, socialistas, à ordem do capital, porque radical é o grau degenerativo atual da barbárie capitalista, com a destruição dos empregos, dos direitos, da vida humana, da natureza e, principalmente, sua incessante tentativa de destruir as figurações de um outro mundo, possível, necessário, socialista, a ser construído pela classe trabalhadora em sua luta de libertação.
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