sábado, 27 de março de 2010

O conceito hegeliano de modernidade, segundo Habermas

Fichamento do capítulo II: O Conceito hegeliano de modernidade e Excurso sobre as cartas de Schiller acerca da educação estética do homem. (Habermas, Jürgen O Discurso Filosófico da Modernidade, Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2002, trad.: Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento)*


 

I

[absoluto, crítica da positividade e religião popular]


 

    Hegel, ao buscar implodir a filosofia da subjetividade nas diferentes formas que se apresenta nas filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, não procede, segundo Habermas, de modo inteiramente imanente. Ao contrário, leva em conta seu diagnóstico de época do Iluminismo, única razão que o autoriza a pressupor um absoluto, que dá a razão o estatuto de poder de unificação. A época do Iluminismo elevou o entendimento à razão, pondo algo finito como absoluto. O infinito da filosofia da reflexão opõe-se a um finito, a própria oposição denunciando a finitude do conjunto e o "declínio" dessa pretensa razão.

    Habermas acusa Hegel de pressupor o que deveria mostrar, isto é, uma razão capaz de unificar as oposições (portanto, mais que um entendimento absolutizado). Habermas conclui que a pressuposição do absoluto diz mais respeito às experiências históricas que Hegel vivenciou do que a argumentos filosóficos.

    Do ponto de vista histórico, Hegel e seus amigos de seminário eram partidários dos movimentos pela liberdade, o que os levou a polemizarem com o teólogo protestante Storr. Eram alinhados filosoficamente com a doutrina moral kantiana e politicamente com a Revolução Francesa. O regulamento do seminário, a teologia de Storr, os quais o Estado oferecia proteção, eram os móbiles da postura crítica de Hegel e seus amigos, crítica que assumiu a princípio a forma moderada de um retorno a um cristianismo primitivo reformador, que visava a introdução da moralidade na religiosidade da nação.

    Hegel dará o nome de "positivismo da eticidade" ao conjunto do objeto de sua crítica: religião positiva é aquela que se funda na autoridade e não dá valor moral à ação humana, aquela que dá ênfase na obra em oposição à ação moral, positiva é uma esperança de recompensa no além e uma separação entre religião pública e privada.

    Partindo da noção kantiana de religião como "o poder de aplicar e validar os direitos que a razão concedeu", Hegel pensará uma religião – em polêmica com a ortodoxia representada por Storr, mas também com a religião racional exemplificada por Lessing – que penetre nos costumes do povo, nas instituições, no Estado e na sociedade, a religião enquanto um elemento da vida pública. A isso dará o nome de religião popular, não puramente racional porque também dirigida à imaginação, coração e sensibilidade.

    Hegel também se dedicará, com uma crítica análoga, à questão política de sua época. A cisão e a ossificação da positividade são denunciadas; o poder político tornou-se um estranho e o Estado não passa de uma engrenagem cujas leis são incapazes de captar a vivacidade atual.

    Essas razões históricas servem ao argumento de Habermas segundo o qual a razão em Hegel é um poder a priori que fragmenta e reunifica as relações da vida. A querela entre ortodoxia e religião racional ilustra a positividade gerada pelo princípio de subjetividade e que, no entanto, leva a necessidade objetiva de sua superação. A tarefa de Hegel, para autocertificar a Modernidade, é mostrar como a positividade é superada justamente pelo princípio que a originou.


 

II

[comunidade ética intersubjetiva e novo rumo à fundamentação da modernidade]


 

    Hegel considera a subjetividade como um princípio de dominação, através da estrutura de auto-relação, que acaba por fazer do sujeito objeto de si mesmo. Mesmo na moral kantiana permanece um resquício de positividade, notável através da estranheza do universal que se impõe com violência à sensibilidade.

    Hegel aponta como alternativa à positividade uma razão reconciliadora com vistas a eliminar a positividade. O "poder de unificação" dessa razão é experimentado no castigo como destino. Hegel pensa um estado social no qual todos os membros têm seus direitos garantidos e necessidades satisfeitas sem ferir os demais interesses. O criminoso que perturba tais relações éticas deve sentir como necessidade histórica do destino o poder contrário da vida que aniquilou, reconhecendo nessa aniquilação a falta de sua própria vida, na causalidade do destino a implosão da totalidade ética. Da experiência de negatividade da cisão se espera que surja a nostalgia da vida perdida, fazendo os demais membros reconhecerem também a falta de sua própria natureza. Assim, ambos os lados perceberão a "abstração" de suas vidas e restaurarão o "fundamento de sua existência".

    Em oposição às leis abstratas da moral e da legalidade, Hegel propõe uma "culpa concreta" que tem origem na divisão de uma totalidade ética pressuposta. Nesse contexto, o destino não pode ser compreendido a partir do princípio de subjetividade. É a perturbação de um mundo de relações intersubjetivas que produz, por alienação desse mundo, a relação sujeito-objeto. Alienação é, portanto, o afastamento da vida em comum. A repressão, desse modo, ocorre a partir da descontinuidade das relações éticas fundadas na intersubjetividade, e não pela submissão de um sujeito que passa a ser objeto.

    Habermas acusa Hegel, no entanto, de falhar no seu intuito na medida em que a "reconciliação" é promovida por um princípio outro que não o da subjetividade (isto é, a intersubjetividade das relações do entendimento). Assim, o princípio que engendrou o positivo não é o mesmo que o supera e a autofundamentação da modernidade falha. Uma das razões dessa falha diz respeito ao fato de Hegel ter como modelo de totalidade ética a polis grega e o cristianismo primitivo, algo estranho à Modernidade.

    O poder unificador operado pela intersubjetividade aparece, à época, codificado com os nomes de "vida" e "amor". Esse poder se estabelece através da mediação comunicativa. A comunidade fundada a partir daí é um lócus onde o sujeito se reconhece uno com o outro, mas também permanece si mesmo. O isolamento dos sujeitos perturba a comunicação, que é restabelecida de modo imanente como télos. Habermas nota que se abriu uma senda de uma teoria da comunicação fundada no conceito de reflexão da razão da filosofia do sujeito. Porém Hegel não seguiu esse caminho, optando pela ideia de religião popular, cuja impossibilidade está ligada a seu parentesco – indissolúvel, e não meramente ilustrativo – com comunidades históricas.

    A Modernidade, contudo, por meio da reflexão que elevou a época à consciência de si, não mais podia buscar no passado modelos exemplares. Isso, somado aos estudos de economia política de Hegel, os quais o levaram a reconhecer as relações capitalistas como uma realidade singular, obrigaram-no a pensar outro modo de reconciliação que leve em conta essas novidades. Hegel, rompendo com os modelos de sociedade clássicos, apelará a um conceito de absoluto que se move no interior da filosofia do sujeito. Porém, segundo Habermas, isso redundará em novos problemas.

    

III

[arte e filosofia como meios da unificação]


 

    Antes de abordar a questão da autofundamentação da modernidade em Hegel, Habermas passa à análise do O mais antigo programa sistemático. Nesse documento – cuja convicção é compartilhada por Hegel, Schelling e Hölderlin – a arte ocupa o importante papel de ser o medium da reconciliação, aquilo por meio do qual a religião racional se tornará popular, a razão se comunicará com a sensibilidade.

    A predominância da arte como meio da reconciliação perde crédito, todavia, já no Differenzschrift (1801). Esse novo diagnóstico é simultâneo ao surgimento do romantismo, cujo subjetivismo é reconhecido por Hegel como expoente do espírito da modernidade. Justamente por isso, permanece como "poesia da cisão". A Filosofia passa a ser o lócus privilegiado no qual a razão apresenta plenamente seu poder de unificação. É a partir da filosofia da reflexão, no entanto, que Hegel buscará fundar esse conceito.

    Hegel reclama da orientação da filosofia da reflexão na medida em que se trata de pensar uma subjetividade que para atingir identidade tem de subjugar um outro. As falsas identidades são criações de um finito alçado a absoluto, isto é, a própria subjetividade. O mundo cindido – nas instituições políticas, na religião, na moral – é unificado pelas categorias kantianas em uma mera projeção, que no limite deixa as coisas exatamente como são – e a permanência e mesmo a produção de cisões pela filosofia kantiana, Hegel dirá, é o dogmatismo dessa filosofia. Essa submissão – travestida de unificação – promovida pela subjetividade leva a uma unidade desarmônica, incompleta e violenta.

    A possibilidade de uma unificação diferente dessa que acaba por gerar mais positividade, é legítima de ser pensada em razão das experiências de crise. A identidade passa a ser pensada como negação de todas absolutizações, em crítica permanente às positividades – portanto não como subjetividade subjugadora. Hegel pensa superar a oposição do finito e infinito através de um sujeito que tem consciência de si de sua substância, que tem em si a unidade e a diferença do finito e infinito. Esse sujeito absoluto não precede o processo universal – como o ser de Hölderlin ou a intuição intelectual de Schelling –, mas subsiste no processo de relação entre finito e infinito e na sua atividade reversa. O absoluto, desse modo, não é sujeito nem substância, mas o processo mediador que se produz independente das condições.

    Habermas passa a mostrar, de modo ilustrativo, a tentativa de Hegel em buscar apontar os erros da modernidade sem abdicar de seu princípio. O exemplo é sua estética. De modo bem esquemático, Schlegel fiava-se aos padrões clássicos de arte, ao passo que Schiller, adotando o ponto de vista do poeta reflexivo da modernidade, pensa que a poesia clássica, ingênua, atingiu padrões hoje inatingíveis, mas toma claro partido da arte moderna que aspira ao ideal de uma unidade mediada com a natureza, ao invés de atingir o belo que é imitação dela. Para Hegel, a arte é a forma na qual o absoluto se apreende intuitivamente. Na religião e na Filosofia o Espírito se representa e concebe; trata-se de formas mais elevadas de sua apresentação. A arte, em contraste, é uma limitação da exposição do absoluto, pois seu medium é a sensibilidade. Desse modo, o que é apenas aspiração em Schiller, pode ser realizado em Hegel como Ideia além da arte. Nisso reside a polêmica dissolução da arte. Hegel conserva e supera através de um mesmo princípio, pois pensa o romantismo, por um lado, como consumação da arte porque é decadência subjetivista da arte reflexiva, mas, por outro lado, como consumação porque rompe reflexivamente com uma forma de exposição do absoluto restrita ao simbólico.

    O mesmo modelo de dissolução é proposto para a religião, cujo alargamento de interioridade no protestantismo foi cedendo cada vez mais espaço ao saber conceitual da Filosofia, salvando o conteúdo da fé e destruindo a forma religiosa.

    Através de um conceito de absoluto que é invulnerável e se impõe contra todas as absolutizações, cujo incondicionado trata do processo infinito de auto-relação que contém todo o finito, Hegel aparentemente teve êxito em conceber e criticar a modernidade a partir de seu próprio princípio. À filosofia, dentro disso, cabe o poder de unificação que supera todas as positividades. Habermas, contudo, diz que o projeto hegeliano rebaixou-se. Da ideia de uma religião popular até a noção de superação promovida por fim pela Filosofia há uma grande resignação. A reconciliação da Filosofia é meramente parcial e o povo é abandonado nessa nova concepção. Habermas diz que isso reflete um esgotamento da crítica da dialética do esclarecimento, mais visível ainda na análise da sociedade civil e Estado.


 

IV

[política e a solução estatal]


 

    As sociedades modernas implodiram o conceito tradicional, aristotélico, de política, na medida em que separaram dois âmbitos no qual o antigo conceito operava, isto é, o fundamento da política global estar ligado em um contínuo à economia doméstica; a estratificação social e a participação no poder político estarem intimamente ligados. Ao contrário, a época moderna caracteriza-se pelo desligamento desses dois âmbitos, dando lugar a economia capitalista, regulada pelo direito privado, e ao Estado burocrático. Isso deu lugar a duas novas disciplinas: a economia política e a teoria do Estado.

    Hegel está historicamente no meio dessas mudanças. Pensa essa separação entre sociedade e política, o que o leva à conceituação da "sociedade civil burguesa". Hegel dirá que nessa sociedade os demais homens são nada, mas, na medida em que o indivíduo não pode prescindir dos outros para seus fins, deve tratá-los como meios de um fim particular. Este fim dá a forma da universalidade, na qual a satisfação de si e dos outros de algum modo coincide. Esse domínio é "neutro" eticamente e os homens nele perseguem seus objetivos egoístas. Essa sociedade é tomada por Hegel, por um lado, como pertencente à corrupção e, por outro, como a aurora do mundo moderno, cuja justificativa está na emancipação e liberdade formal do indivíduo, e mesmo a carência e o trabalho são momentos formadores da subjetividade.

    Desde o escrito de juventude Sobre os modos de tratamento científico do direito natural, Hegel busca pensar a sociedade civil burguesa não como mera decadência da eticidade, mas também como momento necessário dessa mesma eticidade. Hegel pensará, então, um mediador entre a situação da sociedade à época e a totalidade ética que ambiciona, mas que como retomada da antiguidade já se vê interditada. Habermas dirá que Hegel viu a novidade representada pelo Estado moderno – contra a filosofia da restauração, que pensa o direito público como eticidade substancial e o Estado como extensão da família; e contra o direito natural individualista, não ético, e que identifica o Estado às relações privadas da sociedade burguesa –, pensado em contraste com a socialização não política operada pelo mercado.

    Habermas argumentará que a solução apresentada por Hegel é "tendenciosa" quanto à questão da mediação. Segundo Habermas, não há nenhuma razão que aponte que o movimento da sociedade (família, sociedade, vontade política, Estado) deva voltar e ter seu momento superior no próprio Estado. A solução do Estado se apresenta nos quadros de uma solução para o fato da sociedade civil não se auto-regular (a miséria, a concentração de riquezas são exemplos disso). Habermas dirá que disso apenas resulta a necessidade de integrar o antagonismo em uma eticidade. No entanto, a solução toma a forma em Hegel de um universal na dupla forma da eticidade absoluta: 1) abarca a sociedade como um de seus "momentos" e é 2) um "universal positivo", cuja função é deter a autodestruição provocada pelo antagonismo, distinto da sociedade. Esse "universal positivo" é o Estado, que supera a sociedade na monarquia constitucional.

    Essa solução só é satisfatória sob um pressuposto de absoluto pensado como "auto-relação de um sujeito cognoscente". Na Filosofia Real Hegel pensou o todo ético como unidade entre individualidade e universal através da figura da consciência de si. Um sujeito ao reconhecer-se refere a si mesmo como um sujeito universal que está no mundo como totalidade de objetos de conhecimento possível e, ao mesmo tempo, como um eu individual, um entre muitos outros. Como o modelo de absoluto é pensando como subjetividade infinita, os momentos do universal e singular estão unidos em um mesmo quadro lógico de autoconhecimento. Desse modo, o universal tem prioridade sobre o singular, com conseqüências no domínio da eticidade, quais sejam, a prevalência da subjetividade do Estado sobre a do indivíduo – na fórmula de Dieter Henrich, o "forte institucionalismo" de Hegel.

    Habermas aponta a alternativa de mediação do universal e singular por meio da "intersubjetividade de grau superior da formação não forçada da vontade". Essa universalidade formada pelo consenso garantiria uma forma de apelação contra desvios da institucionalização da vontade comum. Essa organização – esboçada nos escritos de juventude hegelianos – permitiria a substituição do aparelho estatal monárquico.

    Por fim, Habermas diz que a partir da elevação do Estado como "efetividade da vontade substancial" por Hegel, tudo que destoa dessa orientação, é lançada na vala comum do irracionalismo. A filosofia passa a desconsiderar as manifestações da realidade. Exemplos são os movimentos democráticos vindo da revolução de julho de Paris e a reforma eleitoral do gabinete inglês, este último que motiva Hegel a escrever a um artigo no qual, conforme a opinião de Habermas, põe-se ao lado da restauração.


 

V

[fim da crítica à positividade]


 

    Em 1802, no artigo Sobre a essência da crítica filosófica, do Jornal Crítico de Filosofia de Schelling, Hegel diferencia dois tipos de crítica: 1) uma dirigida contra as positividades da época, ilustrada pelas críticas do jovem Hegel à religião e ao Estado e 2) outra crítica dirigida ao idealismo subjetivo de Kant e Fichte, que consiste em demonstrar a limitação de uma subjetividade que se nega a reconhecer um conhecimento superior já objetivamente disponível. O Hegel da Filosofia do Direito apenas pratica esse segundo tipo de crítica.

    Desse modo, a crítica não mais incide contra as "falsas" positividades, mas sim é obrigada a reconhecer que as cisões modernas possuem certo direito. Isso se ilustra no prefácio da Filosofia do Direito quando Hegel disse que o efetivo é racional e o racional é efetivo, mesmo na formulação moderada de 1819-20: "O que é racional se torna efetivo, e o efetivo torna-se racional", o que acusa uma concepção de presente pré-decidido.

    Isso leva a uma desvalorização do presente e embotamento da crítica. A filosofia não toma mais os acontecimentos históricos como oportunidade autocrítica, mas sim os esvazia de significado.     De acordo com o segundo modelo de crítica cabe à filosofia apenas criticar as abstrações que servem de anteparo a que a consciência subjetiva reconheça a objetividade da razão.

    O problema da modernidade pôs-se a Hegel que a encarou sob a "constelação conceitual" de modernidade, consciência do tempo e racionalidade. No entanto, a racionalidade – transformada em Espírito Absoluto – impede que a modernidade tome consciência de si própria. A conclusão de Habermas é que Hegel não conseguiu certificar a modernidade, mas como saldo lega a pensar o conceito de razão de modo mais modesto.

    A partir de Hegel surgem três partidos alternativos. O dos jovens hegelianos, que através de um conceito moderado de razão, e por uma dialética distinta, pensam conceber e criticar uma modernidade em conflito consigo própria. Os outros dois partidos buscam desvincular os laços entre modernidade, consciência do tempo e racionalidade. Os neoconservadores (hegelianos de direita) são acríticos à modernidade social, desconsiderando uma crítica ao próprio tempo, além de limitarem a razão ao entendimento e a racionalidade à racionalidade com respeito a fins, perdendo de vista a modernidade cultural e deixando a razão autonomizada no cientificismo. Os jovens conservadores (Nietzsche) radicalizam a crítica ao próprio tempo denunciando a razão com respeito a fins como uma relação de poder.


 

Excurso sobre as cartas de Schiller acerca da educação estética do homem


 

    As Cartas (1795) são a primeira crítica estética da modernidade. De modo solidário com as pesquisas dos amigos de Tübingen, as Cartas pensam uma "utopia estética", compreendendo a arte como o poder unificador capaz de superar as cisões modernas. Para tanto, Schiller pensa a arte como comunicação, intervindo nas relações intersubjetivas dos homens e sendo capaz de realizar o "Estado estético".

    A arte, no esquema de Schiller, passa a ser o meio de realização da liberdade política, através de um processo de formação. Essa formação incide não sobre o indivíduo, mas sobre a coletividade do povo e suas formas de vida. A arte importa enquanto resguarda seu caráter público. Além disso, a mudança das formas de vida passa pela força da comunicação como fundadora da comunidade.

    A autocertificação da modernidade se dá pelo contraste com o antigo. Enquanto nesse a projeção da natureza humana combinava de diferentes modos as partes dessa natureza, na modernidade toda projeção dá-se em fragmentos, com perda da totalidade – e a arte e a poesia têm de se ver com isso.

    Schiller faz uma crítica da positividade na forma de uma crítica da sociedade burguesa ("sistema do egoísmo"), do trabalho alienado (separação entre produção e fruição, meio e fim), da burocracia (o Estado trata os cidadãos como meros objetos de administração) e da ciência especializada e intelectualizada (afastamento do cotidiano, perda da sensibilidade, encerramento à fórmulas).

    Schiller, todavia, compreende a alienação como um movimento necessário do desenvolvimento da humanidade. O isolamento das forças que terminam por entrar em conflito com a verdade é o motor que não deixa o senso comum acomodar-se. Como exemplo, a autonomização do espírito de negócios na sociedade coage os indivíduos fisicamente na natureza e a autonomia do espírito especulativo na filosofia leva a uma coerção moral da liberdade. Isso acaba por gerar um Estado dinâmico e um Estado ético em oposição; à semelhança, ambos oprimem o senso comunitário. A solução dessa oposição para Schiller vêm da retomada do "sentido comunitário destruído", nem como natureza nem como liberdade, mas como um processo de formação que tire do caráter físico a contingência da natureza e do caráter moral a liberdade da vontade, salvaguardando-os. O medium do processo é a arte, que sem nenhuma espécie de constrangimento faz a mente permanecer ativa, em uma "disposição intermediária". A arte, desse modo, ao exceder o domínio da natureza e da moral, cria uma terceira legislação e estabelece uma totalidade.

    O precedente que permite a Schiller pensar essa utopia estética – que acabou por ter produtivas repercussões na tradição hegeliano-marxista – encontra-se no juízo estético da Crítica do Juízo de Kant, que passa a ter uso na filosofia da história. A síntese entre o conceito kantiano de juízo com o conceito tradicional permitiu a Schiller conceber a arte como comunicação, cujo fim é "trazer a harmonia para a sociedade".

    Schiller pensa uma forma ideal da intersubjetividade em oposição a duas deformações: a alienação (o troglodita, que por viver fora da sociedade a toma como algo objetivo) e a fusão (o indivíduo-massa que vagueia na sociedade, sem identidade). A justa medida encontra-se na reconciliação por meio de uma estrutura de comunicação que permita àquele que silencia falar consigo e aquele que na sociedade se encontra fale com toda a espécie, em um modelo de comunicação mais harmônico.

    A proposta de Schiller consiste em revolucionar as relações de entendimento, e não em estetizar as relações da vida – como no projeto surrealista. Schiller insiste na autonomia da arte. Essa concepção terá ecos em Marcuse, que pensará a relação da arte com a revolução, no registro de uma emancipação dos sentidos então embotados. Marcuse alerta que a coincidência entre arte e vida é sintoma de barbarismo, e insiste, como Schiller, na arte como aparência.

    Essa autonomia da arte em Schiller ensaia a autonomia das esferas da ciência, moral e arte, tematizada por Emil Lask e Weber. A confusão entre as esferas não proporciona nenhuma libertação. A arte para Schiller é então apenas o "catalisador", como forma de comunicação, para a unificação das cisões.


 

*Seminário apresentado em 24 de março de 2010 no âmbito do grupo PET-Filosofia da UFPR.

Um comentário:

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.