Obra de Michel Onfray é reducionista, pois trata a história do pensamento como um Fla-Flu paranóico
Faz algum tempo a que se assiste, principalmente no Brasil, um certo interesse renovado pela filosofia. Fenômeno para o qual convergem disposições contrárias, em larga medida ele parece alimentado pela expectativa de descobrir, na dita "sabedoria dos antigos", o segredo de uma vida feliz e realizada. A filosofia acaba comparecendo, nesse contexto, como uma espécie de auto-ajuda de luxo que se reduz a um conjunto heteróclito de reflexões sobre formas de vida ditas mais harmoniosas.
Mas para que tal mutação seja possível, as questões filosóficas precisam passar por uma diluição no campo mais geral da cultura. A língua que as enuncia não deve mais assustar, a filosofia deve falar conosco na gramática clara do senso comum. O que implica não admitir perguntas sobre o caráter distorcido da própria gramática do senso comum. De qualquer forma, a semiformação característica de nossa época sente-se reconfortada ao descobrir que, no fundo, não haveria distância entre Mettalica e as reflexões sobre o imperativo categórico ou entre Matrix e Platão. A separação entre a filosofia, pensada como discurso que visa permitir a crítica dos princípios de racionalidade que sustentam nossos valores, e a linguagem publicitária de máxima visibilidade que nos coloniza é vista como terrorismo de acadêmicos que querem tirar as indagações filosóficas do seu contato imediato com a vida. Coisa de gente reativa. Esta filosofia que se faz "nas universidades" não passaria de um discurso morto. Lutemos pois por fazer da filosofia "uma coisa interessante".
No fundo, é no interior desse projeto geral que se move Michel Onfray. Responsável por livros que viraram "best-sellers filosóficos", Onfray se vê como cavaleiro militante a serviço de um hedonismo expostos em livros como A Arte de Ter Prazer, Tratado de Ateologia, A Razão Gulosa, entre outros. Agora, com seu Contra-História da Filosofia (tomo 1: A Sabedoria dos Antigos), ele resolveu mostrar como a história "oficial" da filosofia é, no fundo, um grande complô urdido durante 25 séculos contra as forças materialistas dos prazeres e do corpo.
Nesse complô feito devido ao pretenso "ódio ao mundo terreno, aversão às paixões, às pulsões, aos desejos, desconsideração ao corpo, ao prazer, aos sentidos, culto às forças noturnas, às pulsões de morte" cabem Platão, Descartes, Kant e, o pior de todos, Hegel. Todos esses "idealistas" teriam por verdadeira função desqualificar a alegria de viver própria aos "materialistas", mestres apagados ou distorcidos pela história oficial do pensamento dominante. Através da redução da história da filosofia à secular batalha entre "idealismo" e "materialismo" que procura se apoiar em uma leitura problemática dos momentos mais belicistas de Nietzsche e Deleuze, Onfray quer nos fazer acreditar em uma historiografia intelectual muito próxima de uma espécie de Fla-Flu paranóico onde se trata, principalmente, de denunciar grandes complôs universais contra a vida e a pulsação libertária do desejo.
É claro que colocações desta natureza só funcionam no plano da mais crassa generalidade. Afirmar que há uma linha reta que vai de Platão até Hegel, passando por Descartes e Kant, só é possível através da desconsideração sumária de um trabalho minimamente sério com os textos. Daí porque o autor se volta contra aquilo que ele chama de "microleitura - que se tornou esporte nacional da Universidade européia". De nada adiantaria lembrar que, por exemplo, entre Kant e Hegel perpassa a confrontação radical de uma filosofia que aceita a distinção entre vontade racional e desejo patológico e outra para a qual tal distinção não tem lugar exatamente porque as pulsões não são vistas como irracionais. De nada adiantaria porque, com Onfray, estamos no domínio da simples esconjuração, e não no domínio da leitura de textos. Trata-se de esconjurar fantasmas que não dizem nada de preciso, como "a historiografia dominante no Ocidente liberal é platônica" ou que ela é um discurso oficial "único, canônico e incontestável"; o que é simplesmente falso, já que basta comparar a história da filosofia do século 20 escrita no interior da tradição francesa com esta pressuposta pela tradição analítica para encontrarmos diferenças significativas de análise, de avaliação e escolha.
Sobre as leituras que Contra-História da Filosofia apresenta de alguns filósofos que tradicionalmente chamamos de "pré-socráticos" (o que realmente não é um termo feliz - e nisto Onfray tem razão -, pois o termo se insere em uma estratégia de elevação do Sócrates de Platão a momento ordenador geral da filosofia antiga), só podemos dizer que elas são profundamente dogmáticas. O tom sempre é apologético e edificante. As diferenças entre, por exemplo, a autarkeia dos cínicos gregos e o hedonismo epicurista são simplesmente ignoradas, como se as articulações propostas pelo livro fossem absolutamente evidentes. Não há, em momento algum, discussões sobre leituras distintas. Tudo se passa como se praticamente ninguém tivesse falado alguma coisa sensata sobre Diógenes, Demócrito, Epicuro, Lucrécio antes de Onfray. Questões mais complexas, como, por exemplo, o problema do naturalismo da teoria cínica da linguagem e sua crítica dos universais, são sempre evitadas, talvez porque Onfray conhece bem o leitor que tem.
Por fim, vale a pena uma consideração de ordem geral. O autor parece fazer tudo isto por acreditar que a afirmação do hedonismo, do prazer solar e do corpo teriam potencial político explosivo em um mundo, como o nosso, onde o saber seria ainda marcado pela negatividade e pelo ascetismo repressivo. No entanto, ele não vê como seu ideal solar, no fundo, não é muito diferente do que podemos atualmente encontrar em qualquer manual de aconselhamento sobre os segredos de "ser você mesmo sem medo de ser feliz". Há muito os discursos sociais repressivos não são hegemônicos, pois a incitação ao prazer transformou-se em dispositivo disciplinar maior de nossas sociedades de consumo. Nesse sentido, sua "sabedoria dos antigos" parece estranhamente contemporânea.
Vladimir Safatle, professor de filosofia da Universidade de São Paulo, é autor de Cinismo e Falência da Crítica (Boitempo)
Fonte: http://www.boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=978-85-7559-118-5&veiculo=O%20Estado%20de%20S.%20Paulo
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