segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A tragédia e a farsa – O aumento das passagens, Joinville, 2007


Há ainda quem vai reescrever a História de Joinville à luz dos movimentos populares de resistência. Existe uma lacuna, um verdadeiro vazio histórico, no que diz respeito à história daqueles que não se contentaram com as imposições das elites locais. Há alguns trabalhos sérios a respeito, mas, de maneira geral, aos movimentos populares ainda falta a organização de suas experiências enfatizando a continuidade histórica de suas lutas, denunciando as soluções paliativas vendidas como panacéias e interpretando as maneiras de organização criadas na interação entre modelos europeus pré-fabricados e seu choque com as realidades mais palpáveis da população.

Uma boa iniciativa nesse sentido está sendo empreendida pelo Movimento Passe Livre, um movimento autônomo, apartidário e extremamente autocrítico1. Os últimos eventos em Joinville2 fizeram o movimento despertar para a história das lutas pelo transporte, sobretudo as da década de 80 e suas reivindicações pelo passe-trabalhador, posteriormente, através de Constituição de 88, o popular vale-transporte.

Antes de abordar diretamente a pesquisa histórica, vale ressaltar um elemento importante que, nos últimos seis anos, pelo menos, não se encontrava presente na conjuntura das resistências aos aumentos de tarifa. Trata-se da COMAM (Conselho das Associações dos Moradores de Joinville), entidade intimamente ligada a atual gestão da prefeitura de Joinville, e suas propostas para o solucionamento da crise do transporte.

Desde o anúncio do aumento da tarifa (possíveis 11,97%), a COMAM pautou na mídia e na sociedade joinvilense a palavra de ordem “11,97% não”. A clara ambigüidade desse lema é reforçada se considerado o recente histórico da COMAM em Joinville, envolvida em um escândalo com o parlamentar Carlito Merss3, e o contraste com a palavra-de-ordem defendida pelo MPL em conjunto com outros movimentos da cidade: “Nenhum Centavo a Mais!”. Com panfletagens no terminal central e com um largo espaço na mídia, a COMAM ocupou um lugar que nos últimos anos vinha sendo hegemonizado pelos movimentos de contestação joinvilenses – por mais débeis e fracos que fossem –, o lugar que sintetizava, de alguma maneira, a consciência crítica dessa população. Além do difícil trabalho de organizar uma resistência contra o aumento da passagem de ônibus, era necessário para o MPL buscar a diferenciação com a COMAM e suas propostas.


Quais são, porém, as propostas da COMAM? Formalizadamente, nenhuma. Isto é, não há documento político oficial que expresse posições ou projetos. As poucas fontes das propostas são todas vindas de internet, de modo que são bem informais4. Uma peculiaridade, vale dizer, do aumento das passagens em 2007 foi a possibilidade de conversar com alguma parte da população via internet e ver o que realmente pensam sobre o transporte. Não há falta de propostas. Há, no mínimo, três projetos – além dos já pautados pelos movimentos constituídos – sobre o transporte: 1. Meio-passe estudantil, 2. Licitação para novas empresas e 3. Criação de um Conselho de Transporte. Aos dois primeiros falta mediação social: efetivamente, através de uma prática política, esses projetos inexistem. São somente idéias sem substancialidade social. Ao terceiro, porém, a COMAM pôs-se como sua mediação social e política.

Aqui começa a se encenar a farsa5 da COMAM. A idéia de um Conselho de Transporte Coletivo, patrocinada pela COMAM, parece sugerir uma maior democracia e transparência na gestão do transporte. Ainda que não seja a solução definitiva, é um avanço. A questão é: será?

A história dos movimentos de transporte em Joinville6, através de uma pesquisa bem superficial, mostra que na década de 80 já houveram grandiosas lutas, sobretudo impulsionadas pelos trabalhadores através da Igreja Católica em sua ala progressista e com a presença de alguns partidos de esquerda, como o embrionário PT e o experiente PCB. Essas lutas obtiveram, se consideradas nacionalmente, um grande êxito: a instituição, na Constituição Federal, do vale-transporte. Antes disso, no entanto, em Joinville foi-se formado o CONTAR (Conselho Tarifário), uma entidade oficial que tinha por objetivo a regulação da tarifa de ônibus. O CONTAR é o equivalente a um Conselho de Transporte, isto é, um órgão oficial com uma composição empresarial (possíveis 50%) e uma representação do poder público, sindicatos e “sociedade civil” (outros 50%), para a discussão e aprovação, ou não, das modificações no preço da tarifa.

Voltando a pesquisa histórica e olhando o presente nessa chave de continuidade histórica das lutas, há documentos sumamente interessantes sobre o movimento da década de 80 – desde os gritos de guerra e músicas até uma reportagem no “A Notícia” sobre o costume “germânico” de se andar de bicicleta em Joinville desmistificado em uma tese de Mestrado. No entanto, o que mais demonstra interesse no momento é um documento cujo conteúdo nada mais é que a renúncia do movimento popular da época a sua participação no CONTAR. O argumento é muito simples, preciso e emblemático: o CONTAR é uma ferramenta de legitimação dos aumentos das passagens de ônibus, distribuindo o ônus de uma decisão impopular e embelezando-a com um verniz democrático.

A COMAM, interpretando seu papel na micro-história joinvilense, age como a grande farsa, repetindo o passado, mas dessa vez sem o caráter mistificador. Embora sem um Conselho de Transporte estabelecido, a COMAM tenta agir como interlocutora da população com o prefeito de modo a ser “utilizada para dar uma ‘legitimidade popular’ ao aumento’”7. No entanto, dessa vez, não é capaz de iludir os lutadores sociais nem a população em geral. Suas propostas, quando confrontadas, sequer são capazes de fazer sentido e a história das lutas de transporte pesam na força do argumento contrário.

De qualquer maneira, a COMAM continua viva e somente os próximos acontecimentos vão definir seu destino. O MPL já demonstrou compreensão suficiente – tanto histórica quanto conjuntural – para lidar com a situação. Resta agora, não mais discursivamente, derrotar a COMAM. Entretanto, a batalha, agora, será em outro terreno, será no campo da luta de classes.


1 Ainda que um tanto inconscientemente, cabe a lembrança do jovem Lukács: “O proletariado não deve recuar diante de nenhuma autocrítica, pois só a verdade pode levá-lo à vitória; por isso, a autocrítica deve ser seu elemento vital” em História e Consciência de Classe, Martins Fontes, 2003. Embora não formalizado dessa maneira, o MPL, por não seguir nenhuma teoria pré-fabricada e por ter uma realidade complexa à frente, tem a autocrítica como um de seus princípios tácitos.

2 Inicia jornada de luta contra o aumento da tarifa em Joinville em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/07/387776.shtml .

3 Maiores detalhes em http://www.gazetadejoinville.com.br/geral_141-6.htm . A ligação entre prefeitura e COMAM é tão espúria que não é meramente política: chega a ser econômica. Ver um panfleto para manifestação no qual essa situação é denunciada: http://brasil.indymedia.org/media/2007/08//391155.pdf .

4 Ver uma boa discussão em http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=15446586&tid=2540568705752017904&start=1 .

5 Ver MARX, Karl O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Abril Cultural, Col. Os Pensadores, 1974. Marx começa o texto citando Hegel quando este diz que os acontecimentos, historicamente, se repetem: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

6 Cito as fontes de memória por não tê-las imediatamente em mãos.

7 Nota oficial do Movimento Passe Livre Joinville (16 de agosto de 2007).




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