Terry Eagleton, autor do livro "Razão, fé e revolução" (inédito no Brasil) foi entrevistado por Miguel Conde. A entrevista foi publicada pelo jornal O Globo, 26-06-2010.
Eis a entrevista.
Em seu livro “Razão, fé e revolução” (inédito no Brasil), o senhor se pergunta por que Deus se tornou um assunto tão central no debate intelectual contemporâneo, e afirma que isso tem a ver com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA. Qual é a conexão?
Os chamados neoateístas são uma espécie de braço intelectual da guerra ao terror. O 11 de Setembro é, portanto, o marco inicial desse debate. Essa discussão aparentemente politicamente inocente sobre Deus é na verdade uma reação ao islamismo radical. Quando falamos sobre o ateísmo hoje estamos falando de política, e não apenas de teologia.
O senhor diria que não devemos pensar o terrorismo contemporâneo prioritariamente em relação à religião?
Não acho que as motivações por trás do islamismo radical sejam principalmente religiosas, mas políticas, ainda que não seja fácil separar as duas coisas no caso do Islã. Ao se bater contra a religião, esse novo ateísmo ocidental está errando o alvo.
Qual seria um alvo melhor?
O islamismo radical é motivado pelo que percebe como uma injustiça política, assim como o fundamentalismo ocidental resulta da ansiedade de um grupo que se sente deixado para trás na sociedade moderna, e expressa isso em termos religiosos, porque precisa do conforto de algumas certezas. Não se pode pensar nenhum dos dois apenas em função da religião, é preciso considerar um contexto mais amplo, o que não significa de forma alguma apoiálos. Há um equívoco, popular no momento, de que explicar seria o mesmo que endossar. Temos que combater esse tipo de discurso com firmeza.
Intelectuais como Christopher Hitchens costumam dizer que a motivação do fundamentalismo islâmico é destruir as democracias liberais. O senhor concorda?
O islamismo radical é muito perigoso, autoritário e antiliberal, e acho que as sociedades liberais têm que ser protegidas disso. Mas acho que Hitchens, particularmente, acredita que isso se aplica ao Islã em si mesmo, e não apenas ao islamismo radical.
Ou seja, acho que Hitchens é um islamófobo, alguém que detesta o Islã como um todo, e não alguém que está preocupado apenas com os ataques à liberdade feitos por algumas das formas extremas do Islã. É irônico que os liberais como Hitchens e Dawkins muitas vezes sejam os primeiros a esposar posições muito antiliberais quando se trata da relação com o Islã. Seria de se esperar que eles de fato protegessem a chama liberal, e não é o que eles têm feito.
O senhor afirma que ao tomarem como equivalentes o sentimento religioso e a intolerância eles estão ignorando uma rica tradição cultural e uma série de discussões teológicas sofisticadas. Mas, por outro lado, não se poderia dizer que, como um fenômeno cultural, nos EUA por exemplo, a religião de fato muitas vezes aparece hoje associada à intolerância?
É preciso lembrar que existe, da mesma forma, a intolerância ateísta. Pense na União Soviética, por exemplo, ou na China de Mao, ou nos estados fascistas, que são com frequência antirreligiosos. Então não acho que exista nenhuma conexão automática entre a religião e a intolerância. Não se pode tomar a religião isoladamente. Ela é tolerante ou intolerante dependendo das circunstâncias sociais e econômico-políticas. Quando as pessoas se sentem acuadas, tendem a se apegar a alguns dogmas reconfortantes, que não são necessariamente dogmas religiosos, embora de fato possam ser.
O senhor descreveu Richard Dawkins como um racionalista à moda antiga. O que quer dizer com isso?
Ambos, Hitchens e Dawkins, de fato são racionalistas da velha escola. E por racionalista não quero dizer simplesmente alguém que acredita na razão, mas alguém que tem uma confiança excessiva na razão, que acredita na razão isolada de outros fatores. Acho que ambos trabalham com uma versão caricatural do Iluminismo, e não percebem que a razão nunca funciona sozinha, e sim com nossas necessidades, desejos e daí por diante.
Em livros anteriores, o senhor debate e critica ideias de alguns dos principais pensadores pós-modernos, especialmente as críticas deles ao racionalismo. Agora, no entanto, o senhor está se batendo com o que chama de neorracionalistas. Algo mudou no seu modo de pensar?
Simplificando bastante, o pós-modernismo subestima a importância da razão, e tende a reduzi-la ao desejo ou aos interesses, enquanto o racionalismo superestima a importância da razão. São erros opostos, dois lados da mesma moeda. Mas o que acho muito irônico nesse debate neoateísta é que as pessoas estão voltando às grandes narrativas que o pós-modernismo supostamente teria desacreditado. Nos anos 1990 falava-se muito no fim da História, no fim das grandes narrativas e daí por diante.
Agora pessoas como Hitchens e Dawkins estão ressuscitando narrativas que supostamente estariam ultrapassadas, e acho que isso é um sinal de desespero, que eles estejam se agarrando a essas certezas reconfortantes, como o progresso, a razão, a ciência, a civilização e assim por diante. E num certo sentido essas certezas têm o mesmo papel nas ideologias deles que as doutrinas nas dos fundamentalistas.
O senhor estaria tentando construir um meio termo na maneira de conceber a razão?
Não acho que em geral o meio termo seja o melhor lugar para se estar. É uma terceira posição, que reconheça que sem a razão estamos perdidos, mas que a razão no fim das contas não é o essencial. A não ser que a razão se relacione com desejos, interesses, afetos, simpatias, ela sequer funcionará como razão. Os racionalistas pensam, pelo contrário, que para a razão funcionar ela deve ser separada dos afetos, da imaginação. Mas aí ela acaba num vazio, onde se torna impotente. É só quando a razão interage com elementos além dela mesma que ela pode se tornar razoável. Uma das razões pelas quais Marx é importante, na minha opinião, é que por um lado ele era um filho do Iluminismo, com um forte compromisso com a razão, mas ao mesmo tempo Marx, como Freud, sempre pensa a relação da razão com poderes que estão além dela.
Recentemente, o filósofo alemão Jürgen Habermas publicou um livro de debates com teólogos, no qual ele discute o lugar da religião numa sociedade democrática. O senhor vê outros pensadores contemporâneos tentando pensar com mais nuances a relação entre fé e razão, para além da simples oposição?
Se existe isso que se pode chamar de neoateísmo, há também um novo ateísmo teológico: Habermas, Badiou, Agamben, Zizek etc. Um fenômeno impressionante e incomum de todo um conjunto de pensadores de esquerda lidando seriamente com teologia.
Deus volta ao debate intelectual de duas maneiras: há uma polêmica contra ele, por um lado, e por outro um aproveitamento de recursos teológicos por parte de uma série de pensadores de esquerda declaradamente ateístas. E acho que essa segunda história ainda precisa ser examinada com mais profundidade. O que está acontecendo, para que parte do trabalho teológico mais importante de hoje esteja sendo feito por ateístas de esquerda? Parte da resposta, na minha opinião, é que, quando a esquerda passa por tempos difíceis, ela não pode ser dar ao luxo de olhar os dentes do cavalo, como se diz. E se ela descobre que algumas ideias teológicas podem ser úteis, então, por que não?
Embora seus textos sejam muitas vezes irônicos ao discutir o pensamento pós-moderno, alguns desses autores foram interlocutores importantes para o senhor?
Sim. Não todos, alguns deles são por demais superficiais. Mas certamente aprendi muito com pós-estruturalistas como Foucault, Lacan, Derrida... E acho que muitos dos pós-estruturalistas — em vez dos pós-modernistas — lidaram de formas indiretas com o marxismo. Derrida e Foucault, por exemplo. Vou lançar um livro no ano que vem, a propósito, chamado “Por que Marx estava certo”, e o que ele fez é pegar dez das objeções mais habituais ao marxismo e tentar refutá-las.
Não é de forma alguma acrítico em relação a Marx, mas tenta mostrar que ele é um dos grandes pensadores do nosso tempo. E talvez o momento global seja adequado para um reengajamento desse tipo.
Há algum tempo o senhor escreveu um artigo em que tentava encontrar uma espécie de fundamento mínimo a partir do qual fosse possível contestar a ideia de que o debate intelectual no fundo é sempre apenas um enfrentamento de ideologias. E então o senhor elegia como esse ponto inicial o corpo humano. Poderia falar sobre isso?
Estava tentando reconceitualizar o materialismo marxista e fundamentá-lo, no que acredito ser uma abordagem razoavelmente original, no corpo. No corpo trabalhador, reprodutor, falante, histórico. Numa época em que há tantos tipos de idealismos, esses idealismos pós-modernos, é importante tentar repensar o materialismo. Mas, a respeito do que você diz sobre ideologia, se é verdade que algum tempo atrás as pessoas diziam que as ideologias estavam por toda parte, que era impossível escapar delas, pode-se dizer que o engano que se comete agora é que ninguém mais fala nisso. O que aconteceu com a ideologia? Fora algumas pessoas, como Fredric Jameson, ela mal é mencionada. Como um conceito, parece ter desaparecido.
É algo mais que precisaria ser repensado. Pelos seus textos tem-se a impressão de que o senhor sente falta também de críticas à democracia liberal nos debates contemporâneos. É verdade?
Sim, embora hoje pode-se esperar que os acontecimentos históricos produzam esse tipo de crítica. Quando há 20 anos se falava no fim da História, era só um jeito de dizer que a democracia liberal era a rainha do pedaço, mas quando contradições e problemas começam a emergir, acho que será possível de novo ter uma perspectiva mais crítica sobre isso.
Seus livros são consideravelmente mais populares do que a média para obras de crítica e teoria literária, e sua escrita é muito acessível e sedutora. O quanto é importante para o senhor o trabalho com o texto?
Em algum lugar, Roland Barthes fala de um tipo de escritor para quem o ato de escrever em si é muito realizador, e talvez não importe tanto o que ele escreve. Às vezes penso que sou esse tipo de figura.
Eu gosto tremendamente do ato de escrever, me divirto muito e talvez por isso escreva tanto. Não sinto nenhuma grande distinção entre a escrita criativa ou crítica quanto ao prazer — já escrevi ambos tipos de texto —, sou muito envolvido com a escrita, como por exemplo Fredric Jameson também é. Escrevi sobre a importância do estilo de Jameson em seu pensamento. Uma vez lhe perguntaram sobre seu estilo e ele respondeu: “bom, tem que haver nisso tudo algo para você mesmo”. E acho que isso é verdade, mas que também é uma questão de tentar, como você disse, ganhar o leitor, de se botar no lugar dele, o que exige um pouco de imaginação, acredito. Eu tento alternar livros mais e menos populares. Gosto de fazer ambas as coisas. Acredito que críticos de esquerda têm uma responsabilidade de popularização, e fico impressionado que tão poucos deles levem isso a sério.
Pensadores de esquerda são muitas vezes associados a um moralismo insípido, que se leva sempre muito a sério. O senhor, por outro lado, parece valorizar o humor e a ironia.
Sim, há um tipo de expressão de pôquer terrível, que nos dá a todos má-fama. O humor, a comédia, a ironia, a sátira, sempre foram para mim muito carregados politicamente. Meu pensamento político sempre foi inseparável desse estilo. Eu tento às vezes escrever não ironicamente, e não consigo.
Fonte: IHU, 27/6/2010.
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