segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Uma inusitada visita à escola

Ida à escola*


Ao chegarmos ao Colégio Estadual do Paraná nos impressionamos com toda a sua imponência. Pensando que nesse colégio haviam estudado pessoas suficientemente ilustres da elite paranaense – Requião, Pessuti, Ary Fontoura –, imaginamos que o colégio ainda mantinha esse nível no que tange à produção e reprodução dessa mesma elite. Chegamos por volta de 13:30h.


Logo ao chegarmos, nos deparamos com um casal de namorados se beijando fora dos muros do colégio. De início, pensamos que se tratava já de uma driblagem de algum tipo de sistema disciplinar. No entanto, logo fomos advertidos pela pessoa que nos assessorava que os alunos beijavam-se em sala de aula com poucos pudores.


Na portaria tivemos que assinar o livro de entrada e saída, deixando nossos RG’s e nomes completos. Um típico procedimento de controle, tal como descrito por Deleuze no texto Post-Scriptum: Sobre as Sociedades de Controle. Ao colégio é fundamental saber quem está dentro de suas instalações para responsabilizar por qualquer tipo de quebra ou descontinuidade da ordem, para, então, punir.


Dirigimo-nos à sala dos professores e fomos apresentados pelo aluno que nos assessorava ao professor de Filosofia. O aluno entregou seu formulário do estágio e iria explicar o procedimento de preenchimento ao professor, no que foi interrompido por este que disse já conhecer muito bem esse tipo de procedimento, assinalando que a prática de estágio é comum.


Às 13:50h o sinal bateu indicando a troca de aulas. O professor em questão parece que pouco se importou com o toque. Um pouco depois do sinal, levantou-se, encetou um pequeno diálogo conosco e só então passou a se dirigir, vagarosamente, para a sala. No percurso, alguns alunos cumprimentaram o professor com pouca ou nula formalidade, perguntando se éramos “aprendizes” do professor, além de se impressionarem com o fato de sermos três e não apenas um.


Chegamos à sala de primeiro ano do Ensino Médio às 13:57. A impressão fundamental foi de muito barulho, conversa, informalidade. Além disso, a sala estava lotada, com pouco espaço sobrante, de modo que tivemos algum trabalho para providenciar cadeiras para sentarmos.


O primeiro ato do professor, antes de qualquer cumprimento ou saudação, foi a chamada, procedimento que consiste em se pronunciar em voz alta o nome de diferentes pessoas ou um número que as identifica, para verificar se as mesmas estão presentes. O barulho sequer diminuiu significativamente, mesmo assim a chamada começou e prosseguiu. É importante notar que a chamada ocorreu por número, e não por nomes, totalizando por volta de 40 números. Isso nos chama atenção, pois se o nome é um expediente de individuação dos sujeitos, destacando suas identidades, o número os homogeneíza, retirando o que lhes é peculiar para pô-los e organiza-los sob uma seqüência friamente numérica.


O professor, depois da chamada, levanta-se e uma garota fala com ele como se ele fosse simplesmente um igual, sem nenhum tipo de divisão hierárquica ou que a figura do professor implique em autoridade; fala-se como fala-se com um amigo. Depois disso, com auxílio de uma folha de anotações o professor passa a escrever no quadro um conteúdo referente ao filósofo Aristóteles. Não é dada nenhuma indicação, nenhum tipo de orientação, parecendo apenas pressuposto que os alunos devem copiar a matéria. Outro ponto curioso é que embora não tenha havido nenhum tipo de cumprimento por parte do professor, ele, no quadro, escreveu um “Boa Tarde”, substituindo o contato direto pela mediação do giz e do quadro.


Enquanto passava o conteúdo no quadro, fundamentalmente nada se modificou na sala: os alunos continuavam suas mais diversas práticas como se nada estivesse acontecendo. A maioria não copiava a matéria. Havia pelo menos um aluno com fone de ouvido, possivelmente escutando música. Um outro produzia uma espécie de máscara de carnaval, a partir de uma coroa de papelão da rede de lanchonetes Burger King. Três meninas copiavam entre si conteúdo da matéria de Física. Lá pelas tantas, um garoto chega à sala, entra, cumprimenta seus amigos e senta ao nosso lado, passando a conversar com outros amigos – a carteira antes da sua chegada estava vazia, apenas com um caderno sobre ela. Todo esse processo que vai de entrar na sala, fazer a chamada e passar o conteúdo no quadro durou cerca de 23 minutos.


Depois disso, começou a explicação. O professor pediu atenção dos alunos os chamando de “crianças”, no que foi prontamente contrariado por uma aluna, que disse que criança abrange o indivíduo até seus 13 anos de idade. O professor corrigiu, chamando-os de “pré-adolescentes”.


A todo o momento da explicação o professor pede silêncio aos alunos. Há três níveis da explicação de Aristóteles: um nível biográfico, outro comparativo a Platão (no que concerne aos “universais”) e a importância de Aristóteles em relação à ciência moderna. No quadro, há quatro tópicos escritos pelo professor. A TV Pen-drive (aparelho instalado em cada sala do colégio, no qual é possível reproduzir fotos, vídeos ou músicas através da conexão de um pequeno dispositivo semelhante a um isqueiro ou chaveiro – o chamado pen drive) foi utilizada para mostrar, no geral e no detalhe, o quadro Escola de Atenas do pintor renascentista Rafael, sobretudo para ilustrar a diferença entre Platão e Aristóteles. A explicação de Aristóteles é superficial, não aprofunda nenhum elemento. Durante a explicação, no entanto, o professor impede, de modo geral, as conversas paralelas. Uma aluna pergunta quem é Platão e o professor relembra o conteúdo da última aula.


Toda a explicação, no fundo, o grosso da aula, dura cerca de 13 minutos. A explicação termina com o professor dizendo que naquele dia estava “bonzinho”, de modo que a aula acabara por ali mesmo e para a próxima ele levaria uma fotocópia do conteúdo seguinte, não sendo mais necessário a cópia do quadro.


A aula voltou ao estado inicial, anterior a certa disciplina que se instalou durante a explicação. O professor selecionou na TV Pen-drive um vídeo a respeito do conceito de indústria cultural, mas sem nenhum fim pedagógico, pois a atenção da turma sequer foi solicitada. Depois desse vídeo, o professor selecionou a música do grupo americano Black Eyed Peas cujo nome é Boom boom pow. A música consiste em uma forte batida, parecida com a do funk carioca. Nesse momento a aula virou uma verdadeira festa. Alunos passaram a dançar ao ritmo contagiante da música. A essa altura, o professor conversava com alguns alunos enquanto a TV Pen-drive dava o ritmo da aula-festa. Mais para o final da música, o professor veio falar conosco, que sentávamos ao fundo da sala. Perguntou o que achamos da aula e começamos um diálogo a respeito do acervo de filosofia na biblioteca. Ele disse que há uma política do governo estadual para a recomposição das bibliotecas do professor através da compra de livros. Cada professor tem por direito, a cada ano, escolher dez livros para essa biblioteca. O professor em questão disse, no entanto, que havia esquecido de solicitar os seus dez livros ao governo.


Nessa transição, a música seguinte tocada pelo pen-drive do professor era uma espécie de sertanejo universitário. Ocorreu que o controle da televisão foi apossado por uma aluna, que aumentou o som a ponto de prejudicar nossa conversa. A música era cantada em coro por uma série de alunas, o que provocou uma vaia por parte de um grupo de garotos, possivelmente identificados sob outro estilo musical.


Nossa conversa com o professor ficou insustentável, a ponto de ele ter de retomar a posse do controle da televisão e abaixar o som. Nesse momento a aula realmente se encerrou. O período musical durou cerca de 8 minutos (portanto 14:41h).


Saímos da sala acompanhados pelo professor. Íamos à biblioteca quando cruzamos com um policial fardado conversando com uma pedagoga. Era notável que a sua presença não era estranhada pela comunidade.


Análise


A experiência de assistir uma aula de filosofia no colégio mais tradicional da cidade, e talvez do estado, foi grandiosamente surpreendente, para dizermos o mínimo. A imponência do colégio mostrou-se mais pertencente a um imaginário pretérito nosso do que com alguma correspondência real.


A aula, em sentido estrito, durou meros 13 minutos. O restante nos pareceu uma recreação dos alunos, em um processo de sociabilidade, e não de aprendizado. Percebemos que a figura do “professor autoridade” simplesmente não existe. A relação que os alunos mantêm com o professor é de grande informalidade.


A TV Pen-drive nos pareceu um recurso muito interessante para ilustrar as aulas. No entanto, ela foi inteiramente subvertida com a ação de colocar músicas para preencher o vácuo de conteúdo. A festa substituiu a aula.


Mesmo o professor sendo muito jovem – sequer tinha trinta anos – nos pareceu já estar plenamente inserido em uma cultura do professor desestimulado da carreira docente do ensino básico público. Era patente a sua indolência: desde se dirigir à sala com 7 minutos de atraso, até propriamente a execução da aula e a relação que manteve com os alunos. O fato de ele não indicar que era necessária a cópia do quadro, nos pareceu um expediente puramente para postergar a cópia dos alunos (como uma acordo tácito: “eu não digo e vocês se fazem de desentendidos, aí ganham mais tempo de cópia e eu de descanso”), deixando mais momentos vagos durante a aula. O descomprometimento em solicitar os livros ao governo também é um indício de acomodação com a carreira docente.


De qualquer modo, essa visita nos trouxe uma reflexão com vistas a desconstruir a imagem do Colégio Estadual do Paraná, da figura ultrapassada do “professor autoridade”, dos meio digitais como a solução para os problemas pedagógicos. Nesse sentido, muito embora tenha rompido os limites do nosso pessimismo, a visita foi muito produtiva.


* Relatório da pesquisa de campo da disciplina de Didática cursada no ano de 2009. Texto de Hernandez Vivan e Nilson dos Santos Morais. Revisão de Rodrigo Ponce.

3 comentários:

Maikon K disse...

Cara,

Ler tua postagem trouxe lembranças um tanto que perturbadoras. Na minha primeira tentativa de estágio fui à escola que estudei boa parte da minha formação do ensino fundamental e médio. Tinha a ideia de “servir” de uma maneira interessante na escola que passei boa parte da minha vida. Sinceramente, a escola me fez desistir do estágio naquele ano.
Na segunda tentativa fiz uma escolha de um espaço escolar que já conhecia na mesma medida que conhecia os professores e o trabalho executado. Enfrentei alguns problemas por conta da direção que era contrária aos projetos de educação mais “progressista” do corpo de professoras, mas fora tudo isso foi tudo bem.
Agora, professores acomodados as escolas estão cheias, mas não faço ideia se a “culpa” é do sistema ou dos professores ou de ambos.
Em relação a tecnologia o professor Fernando Sossai tem discussões interessantes.

Inté.
Maikon k

Maikon K disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maikon K disse...

Cada caso tem suas particularidades, em relação a atual condição da classe dos-as professores-as é o espaço para as particularidades, já nesses poucos anos de experiência como professor encontrei outras pessoas completamente acomodadas por querer essas condições, outras vencidas pelo sistema passando por aquelas que acreditam na sala de aula como um espaço para mudança e até transformação social.

Uma idéia interessante é vc buscar contatos com outros professores e outras professoras de Curitiba, até mesmo de matérias diferentes da filosofia, aí existe a possibilidade de encontrar outros professores de filosofia, assim existe a possibilidade de esbarrar com alguém mais dedidcado.

Em relação ao ensino de filosofia em Joinville a situação é mais nefasta ainda, pelo menos na rede do estado de sc, existem vários comediantes de quinta categoria lecionando filosofia. Aí, o famigerado mercado de trabalho poderá trazer uma boa quantidade de aula, onde poderá produzir uma aula diferenciada.

Cara, o esquema é não desanimar com essas pedras da graduação, pq após ela poderá encontrar outra realidade, onde os-as educandos-as respeitem o-a professor-a e o mesmo os respeitem.

inté.
mk