É extremamente complexo pensar a militância política atualmente – se é que ela é possível. Um início talvez fosse verificar as atuais opções políticas – partidos, movimentos, práticas – e buscar um quadro de identificação. O problema, dessa maneira, se encerraria a aderir ou não a algum modelo praticado por um grupo que ambiciona alguma mudança social.
Uma outra maneira mais produtiva de abordar a questão talvez fosse inscreve-la historicamente, buscando algum exemplo de militância que pudesse extrair qualquer tipo de conseqüência ao presente. Optamos, nesse breve texto, pela segunda possibilidade. A distância histórica nos faz tomar como caso privilegiado o do PCB (Partido Comunista do Brasil até 61, depois Partido Comunista Brasileiro) e de um militante nada ilustre, sem grande figuração pública ou notoriedade: Álvaro Ventura. A escolha se justifica levando em consideração a análise segundo a qual pela primeira vez, nacionalmente, houve uma organização dos oprimidos que, com algum êxito, conseguiu inserir a “questão social” na política brasileira e permitiu a entrada em cena dos que até então não tinham parte na política.
Álvaro Ventura, catarinense nascido em Coqueiros, atual São José, imediação de Florianópolis, em 1893. Era filho de um anarquista. Teve como primeira profissão tropeiro. Sua primeira prisão foi em 1910, em razão de um comício em defesa das 8 horas de trabalho. Em 1914, aderiu ao anarquismo. Nos anos de 1917-18 participou do movimento anti-guerra, fazendo contato com Edgard Leuenroth e Astrojildo Pereira.
Nessa época, já influenciado pela Revolução Russa, Ventura, cuja profissão era padeiro, vê estourar uma greve em sua categoria. Busca reunir-se com o sindicato, o qual era dirigido por anarquistas que, por uma discordância tática – colocar ou não dinamite nas padarias que não aderiam a greve – o denunciam para a polícia, levando-o a deportação no Mato Grosso. Prenúncio de tempos de transição nos quais hegemonia anarquista no movimento operário seria criticada, sendo substituída pela ideologia de matriz bolchevique.
Em 1922 volta à Florianópolis e por causa de uma participação frustrada no Partido Republicano reaproxima-se dos anarquistas e dos incipientes comunistas locais. Nessa época distribuía o jornal A Plebe, editado por Leuenroth e “impresso em papel de seda para poder ser engolido em caso de aperto”[1] ao mesmo tempo que fazia uma ponte com comunistas do Rio de Janeiro.
Em 1930 rompe contatos com os comunistas que se recusavam a tomar parte na movimentação liberal do período. Ventura participa da “Revolução de 30” aceitando o chamado da Aliança Liberal e denunciando a promessa não-cumprida de armamento popular. Para bem ou para mal, se consumava a vitória da oligarquia industrializante que se encarregaria de uma “modernização conservadora” – industrialização com conservadorismo e alijamento das classes populares da política. À essa época os comunistas do PCB – fundado em 1922 – se limitaram a um pronunciamento vazio e, efetivamente, à inação, simplesmente vendo o cortejo liberal passar.
Tentando uma superação do passado anticlerical – dos nove membros fundadores do PCB sete foram anarquistas – Ventura assinalava o papel que a religião poderia desempenhar no trato dos comunistas com a população. Quase intuindo o que apenas um estudo historiográfico ou sociológico ou mesmo meramente estatístico poderia comprovar – o catolicismo de boa parcela da população brasileira –, Ventura reconhecia a situação particular da formação brasileira e se posicionava contrário a posturas ateístas “por entender que isso dificultava o povo a se aproximar do movimento revolucionário”. Olhando essa posição hoje, ela parece, além de sensata, profética, no sentido de uma antecipação do que a Teologia da Libertação viria mostrar com força nas décadas de 60 e 70. No entanto, para se fazer justiça ao passado sem idealizar a posição individual de Ventura, talvez fosse mais adequado observar essa questão sob o ângulo reverso, ou seja, a tardia consideração dos aspectos emancipatórios das religiões por parte da Esquerda brasileira, ponto revisto na fundação do PT.
Em 1934, Ventura se torna constituinte, deputado classista (eleito suplente por um grupo profissional, os estivadores), na ocasião de vacância do titular, morto em uma briga passional. A partir desse momento se conclui a aproximação com o PCB que, não raro, passa a orientar seus discursos. A despeito de sua lucidez em 1930 na crítica à posição inativa dos comunistas, Ventura considerava o Brasil um país feudal, na esteira do esquema da 3ª Internacional aos países do terceiro mundo, modelo explicativo esse seguido fielmente pelo PCB. Tampouco não deixou de compartilhar da avaliação nada serena – e, em última instância, falsa – dos comunistas em relação aos trotskistas, julgando-os como “agentes das camarilhas dominantes nas fileiras do proletariado”. É bem verdade que o Brasil carecia de estudos sobre si mesmo e o espírito da época era de franca calúnia aos partidários de Trotsky, o que limitava a atuação de Ventura. Limites históricos os quais todo o conjunto da militância do PCB estava sujeito.
Outro ponto a favor da lucidez de Ventura – e da falta dela ao PCB, aceitando a ingerência disparatada de Moscou – é em relação à Insurreição Comunista de 1935. Segundo Ventura, não se havia condições de fazer uma Revolução. A Insurreição, como é notório, foi um grande fracasso que – se não foi o maior dos fatores, seguramente foi um deles – preparou terreno ao Estado Novo, a ditadura getulista. Essa derrota imprimirá a vergonha e a confusão no seio do PCB, a ponto da quase total desorganização do partido.
Em 1939 eclodiria a Segunda Guerra Mundial. No Brasil se organiza a Liga em Defesa Nacional reivindicando a participação do Brasil no conflito, ao lado dos Aliados. Álvaro participa intensamente da campanha – a princípio, de maneira solitária. O PCB somente viria a prestar apoio a esse movimento, e efetivamente liderá-lo, quando da invasão de Hitler a União Soviética. Nesse momento o PCB se reorganiza. Em 1943 Ventura assume a secretaria-geral, a posição mais importante dentro do partido. Em 1945 Getúlio cai e há a legalização do PCB. São tempos áureos: com uma política democrática e hegemonia nos sindicatos, reunirá cerca de 200 mil membros e intelectuais da qualidade de Oswald de Andrade e Carlos Drummond. O PCB elege 14 deputados, entre eles Carlos Marighella e o escritor Jorge Amado, e um senador, Luís Carlos Prestes. Nesse mesmo ano, Ventura entrega seu cargo de secretário a Prestes.
Em 1947, o PCB é posto na ilegalidade sob o argumento que os estatutos verdadeiros do partido conflitavam com os oficiais que se encontravam no Tribunal Eleitoral. A ambigüidade da política exercida pelo partido – União Nacional e luta crítica pela democracia, pondo em primeiro plano, porém, a política de “Paz Mundial”, posicionamento exportado de Moscou com pouca ou nula ressonância no Brasil – favoreceu a incapacidade de organizar uma resistência à ilegalidade. O contexto – mundial, inclusive – era de provocação aos comunistas. Prestes havia caído em uma delas quando perguntado sobre a possibilidade de uma guerra entre Brasil e Rússia, respondendo em favor da Rússia. Além disso, o PCB lançou um manifesto pedindo pela queda do presidente Dutra, desencadeando mais repressão. Assim se consumava uma das primeiras manifestações da Guerra Fria na periferia do capitalismo. Frustrado, Ventura rompe com o PCB.
A partir de então, ele prestará assistência aos militantes insatisfeitos com o giro esquerdista de 1948. Verá com bons olhos a aproximação que se opera com o trabalhismo a partir de 1958 – um dos resultados da discussão do relatório de Kruschev denunciando o stalinismo. Escapará do golpe de 64 caindo em uma semi-clandestinidade, pois era um dos nomes a ser perseguido, de acordo com o Ato Institucional número 1. Com a “abertura” da ditadura irá se reaproximar do PCB em apoio a campanhas pontuais. Em 82, com auxílio do PCB, irá para a União Soviética fazer uma cirurgia de catarata, tendo bons resultados.
Em 1989, “apanhado pelo inverno”, já com a saúde debilitada – tinha então 96 anos –, Ventura vai para o hospital em julho. Os médicos do hospital estavam organizando uma greve e para tanto buscavam consultar os pacientes, da ordem do mais velho ao mais novo, sendo primeiro o sr. Álvaro Ventura:
O que eu acho da greve? Vocês já deviam ter começado. Os colegas de vocês estão parados. E vocês, o que estão fazendo que não se mobilizam?
Morreu no dia 10 de julho de 89. Em 9 de novembro do mesmo ano caía o Muro de Berlim. Assim, acabava uma era que havia modelado um verdadeiro paradigma de militância. Álvaro Ventura foi mais um dos homens e mulheres que tentaram construir uma sociedade igualitária sob o horizonte do Comunismo de inspiração soviética, com seus impasses e distorções. O fim dessa época, entretanto, permite o começo de outra que, apesar de alguns sinais, por algum entrave – talvez o juízo dos mortos que não deixamos enterrar – insiste em não começar.
[1] Como relata o comunista Manoel Alves Ribeiro.
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