sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Com a palavra, Paulo Arantes


"Custamos a compreender que a decomposição da sociedade salarial tenha decretado o fim da política", acredita o filósofo Paulo Arantes. E diz mais: o neoliberalismo transfere soberania para as empresas, e contribui decisivamente para o esvaziamento da política. Constata que "ainda não se apresentou o sujeito em condições de medir forças com a soberania empresarial". Neste contexto, o surgimento de novas formas de luta na América Latina, especialmente as indígenas apontam para uma "espacialização das lutas anti-capitalistas". As afirmações do filósofo se encontram na entrevista concedida ao boletim CEPAT Informa, n. 137, set. 2006.

Paulo Arantes é professor aposentado do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), autor de, entre outros livros, Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, A ordem do tempo em Hegel. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2000, e Sentimento da Dialética. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

Obs. A entrevista foi concedida antes da reeleição de Luis Inácio Lula da Silva.

Como o senhor analisa o atual debate político que se dá em torno das eleições?

Seria interessante começar por uma recapitulação. Em 1974, salvo a chacina em curso no Araguaia, a luta armada contra a Ditadura estava não só militarmente derrotada mas estrategicamente inviabilizada como alternativa política. Naquele mesmo ano, uma surpreendente vitória eleitoral das oposições, a despeito de todas as restrições do aparato repressivo em pleno funcionamento, não só impunha ao regime sua primeira derrota efetiva, como assinalava uma mudança de percepção social da esquerda militante mortalmente golpeada 10 anos antes. Ninguém encarava a urna burguesa como tábua de salvação, e no entanto a desautorização do regime estava de fato começando naquele momento.

Dali para a frente, um pequeno desgaste lhe seria imposto de quatro em quatro anos, até que a conjunção da crise econômica com as grandes mobilizações de massa precipitou o seu colapso. Em 1989, uma outra eleição poderia ter mudado o rumo do país. Ou não? Seja como for, como a vitória lhe fora confiscada no último minuto de uma consagração histórica, é mais do que compreensível que a nova cultura eleitoral da esquerda tenha saído altamente fortalecida do episódio, até à miragem apoteótica de 2002.

A eleição de 2004 marca o fim de um ciclo

Quatro anos depois nos defrontamos com um fenômeno inédito e por isso mesmo característico do fim de todo um ciclo. Pela primeira vez, desde a reviravolta inaugural de 32 anos atrás, o desfecho de uma eleição nacional tornou-se irrelevante para o campo popular, mas nem por isso menos desastroso em todos os sentidos. Pode-se dizer que o debate atual gira em torno das anomalias decorrentes deste anti-climax - que evidentemente não se reduz apenas à escandalosa transformação do PT num partido da ordem. Vou me limitar a uma delas, a uma inusitada troca de posições. Enquanto os detentores do poder real se tornaram cinicamente materialistas no que diz respeito ao significado de uma eleição, a esquerda ainda vive o luto da brecha eleitoral que está se fechando.

Na atual campanha, não é a esquerda, mas a direita que se queixa da falta de projetos em disputa, que anuncia a exaustão da democracia representativa, etc. Não me parece mero jogo de cena de quem está com a vitória na mão e controla os dois partidos que também dissimulam uma concertação de cúmplices na acirrada concorrência por nichos do mercado político. Sei que a esquerda de esquerda corre por fora deste baile de máscaras, mas ainda pensa por dentro quando não entra em campanha apenas para marcar posição - quando se fala em políticas públicas universalizantes, se pensa exatamente no quê? Gestão ou luta de classes? Como não é mais possível separar uma da outra, fugimos do gueto para nos debatermos de novo na barriga da baleia. Uma vez dentro do bicho a esquerda tapa o nariz e vai à luta, enquanto nos talk shows da vida toneladas de cientistas políticos furta-cor dissertam sob aplauso geral acerca do milagre de instituições democráticas que se fortalecem à medida em que nada mais é decidido no seu âmbito.

A tese da "irrelevância da política"

A tese da "irrelevância da política", de Francisco de Oliveira, tem repercutido intensamente no debate político. O senhor considera que de fato a política perdeu a capacidade de dirigir a sociedade?

Dito isso, pediria para não se descarregar sem mais nas costas exclusivas do Chico de Oliveira a assim chamada tese da irrelevância da política - que aliás acabei de atribuir à inconsciência cínica de uma camada dominante que nem sequer se dá mais ao trabalho de se levar a sério, de resto, em linha com um capitalismo que dispensa hoje qualquer institucionalidade extra-econômica, salvo a penal, é claro, não por acaso em expansão acelerada.

Para compreender a "virada" do Chico de Oliveira é preciso recuar no tempo

Quando o Chico diz que esta é uma conclusão muito dura para ele mesmo, é preciso recuar no tempo e creditar-lhe muitos anos de militância intelectual na tese oposta: na capacidade da política de classes de tirar do limbo social novos atores; de reconfigurar Estado e Sociedade pela conquista de novos direitos; de expandir a esfera pública e aprofundar a democratização da riqueza socialmente produzida; de reinventar formas sociais de representação através do dissenso etc. Até que, terminada a trégua redistributiva dos trinta anos dourados, o capital retomou a guerra social e reapresentou a conta.

Algumas revisões ingratas precisaram ser feitas, entre elas, a verificação de que o discurso político dos direitos da cidadania - cuja validade intrínseca não o impediu de ser recuperado pela verbiagem gerencial-solidária das mil parcerias fajutas entre tudo e qualquer coisa - estava correndo por uma pista inexistente; que o neoliberalismo não era apenas uma política econômica perversa a ser descartada assim que a correlação de forças fosse menos desfavorável e substituída por uma macro-economia de esquerda que resgatasse o Banco Central do seu cativeiro no mercado etc.

Ruptura entre o mundo do trabalho e a centralidade moderna da política

Havia uma certa ilusão jacobina nisso tudo. Me explico. Na sociedade moldada pelo modo capitalista de produção, vigora a lei da troca de equivalente por equivalente, salvo no que concerne a força de trabalho, cujo consumo produz um excedente que faz o bolo do capital crescer. Deixando na sombra o mundo subterrâneo da produção, vale para todo o resto o princípio da igualdade, ancorado na troca generalizada, da esfera da circulação de mercadorias ao Parlamento, norma subjacente que o movimento histórico da classe trabalhadora tratou de universalizar através da luta política contra todos os obstáculos e resíduos anacrônicos que a burguesia ia semeando pelo caminho. Aqui o vínculo, que chamei de jacobino para dar a data de uma ruptura histórica, entre o mundo do trabalho e a centralidade moderna da política. Daí a ilusão, aliás incontornável enquanto de fato avançou a luta pela igualdade.

"Custamos a compreender que a decomposição da sociedade salarial tenha decretado o fim da política"

Como todas as desigualdades deviam aparecer necessariamente, sob o prisma do critério burguês máximo, como uma injustiça inaceitável, também era inegável a matriz política do dano a ser reparado, bem como plausível enxergar, nos mesmos termos políticos, a exploração econômica como uma desigualdade a mais e igualmente intolerável, demandando em conseqüência a compensação de um "salário justo", ficando em segundo plano a abolição da relação mesma de sujeição pelo assalariamento. Não deveria então surpreender - mas custamos a compreender - que a decomposição da sociedade salarial tenha decretado o fim da política, bem entendida agora como forma histórica de igualação de interesses e direitos correlatos. É bem verdade que o fim da política numa sociedade antagônica é sinônimo de violência explosiva. Daí a escalada da militarização generalizada e a conversão do Estado Social em Estado Penal. Tudo isso é mais do que assustador, mas resta ver se não estamos fazendo o luto errado. A igualdade dos modernos que o capitalismo inventou só é falsa na medida em que a alegação de sua realização plena não corresponde à realidade.

O socialismo, no entanto, tem a ver com a liberdade e considera pré-histórica essa igualdade, baseada na troca de equivalentes e na expropriação do tempo livre pela servidão do trabalho. Por isso sua política, sendo anti-capitalista, só pode ser emancipatória. Dá pa sentir o drama: no fundo a política que o camarada Chico está dizendo que se tornou irrelevante é a política burguesa que durante o longo ciclo do capitalismo histórico só pode ser implementada com o braço esquerdo das lutas das classes oprimidas, que forçavam assim sua entrada no jogo da troca de equivalentes em igualdade de condições. Foi o que salvou o capitalismo da autodestruição, pois entregue a si mesma, a política burguesa se converte ato contínuo em autocracia.

O neoliberalismo transfere soberania para as empresas

Como esta simbiose contraditória entrou em colapso, a guerra está novamente pedindo passagem. Aliás, a política de poder das Grandes Potências - como se diz no execrável jargão das chancelarias - está aí de volta, vivinha da silva. Vamos nos alinhar e marchar para o matadouro, como em agosto de 1914? A política que está se tornando, já se tornou irrelevante, nunca será demais repetir, tal o estado de prostração diante do cadáver errado, é a política burguesa, enfim emancipada, por isso o Estado não cessa de transferir poder para o mercado - o neo-liberalismo é isto, uma tecnologia de poder e governo para que haja mercado e não a despeito do mercado, para corrigir suas disfunções -, quer dizer, cada vez mais transfere soberania para as empresas, até o limite do poder punitivo penal.

"Ainda não se apresentou o sujeito em condições de medir forças com a soberania empresarial"

Nosso drama é outro, e a política de que carecemos também. A saber: ainda não se apresentou em cena - e como poderia? O antigo regime desmoronou há um quarto de século, se tanto - o sujeito coletivo em condições de medir forças com essa nova soberania empresarial, que hoje dispõe inclusive de milícias próprias e um sistema judiciário particular. O novo nome do jogo é exploração, nua e crua, tanto mais intensa quanto mais o trabalho vivo vai se tornando redundante e o emprego escasso, uma forma brutalizada de controle social, além do decorrente encarceramento em massa. O jogo da falecida política - mau defunto para o qual não gastaremos vela - também se inverteu: são as empresas soberanas que tutelam e administram as políticas de sua conveniência, políticas que outrora chamávamos de públicas, de TV digital à gestão do aterro sanitário social em que o país se transformou.

Na tentativa de identificação desse novo sujeito, devemos saber pelo menos onde procurá-lo, para isto é preciso olhar para o mapa da exploração. Ao redistribuir pelo planeta suas cadeias produtivas, ao subcontratar, terceirizar, informalizar, precarizar etc., as grandes corporações estão reordenando as relações entre espaço e poder mundo afora. Estão favelizando, suburbanizando, bunckerizando, conurbando etc. Estão por assim dizer replicando sua forma de soberania sobre territórios retalhados e sobrepostos às velhas jurisdições nacionais.

Trata-se de uma nova forma territorialista do poder do capital

E quando falamos em soberania empresarial, estamos falando numa nova forma territorialista do poder do capital, sem a qual, por exemplo, pouco compreenderíamos das surpreendentes rebeliões indígenas na América Latina destes últimos anos. Estamos enfim testemunhando uma inédita espacialização das lutas anti-capitalistas. Quem sabe devamos garimpar por esta vertente, muito mais os territórios do trabalho atroz e um pouco menos, por enquanto, o chão de fábrica, de qualquer modo entregue aos robôs, cuja alienação ainda não nos concerne. Mas numa economia tocada por uma falsa mercadoria como a informação, cuja riqueza livre é subtraída pela apropriação empresarial, cedo ou tarde chegaremos também a este coração da cadeia de comando, pois afinal informação sem uma inteligência viva que a decifre é arquivo morto.

"O voto no mal menor não deixa de ser um passo atrás difícil de recuperar"

Parcela significativa do movimento social, expressa no Movimento Consulta Popular, frustrada com os rumos do governo Lula, afirma que encerramos um ciclo na luta política brasileira e que agora trata-se de procurar novos caminhos, uma vez que a luta institucional deu com os burros n'água. Como o sr. avalia esse tipo de reflexão?

É bom não esquecer todavia que uma outra parcela não menos significativa do movimento social está reelegendo o atual Presidente. Sempre se poderá dizer que é preferível errar ao lado do povo do que acertar com aqueles que o caluniam: se é pobre está condenado a ser cliente e consumidor eleitoral passivo. Seja como for, o voto meio encabulado no mal menor não deixa de ser um passo atrás difícil de recuperar, pragmatismo vicia, além de desmoralizar a luta pela hegemonia quando baseada em "conquistas", além do mais reversíveis ao menor solavanco.

Falta uma "outra campanha" que conjugue desobediência civil e mobilização de massa

Quanto ao voto nulo, relembro que entre 64 e a véspera de 74, a esquerda que o recomendava estava pondo a cabeça a prêmio na aposta da política armada. Hoje precisaríamos inventar também uma "outra campanha", conjugando desobediência civil e mobilização de massa. O lulismo está aí para que isto não aconteça, é sua função estratégica no ciclo recém iniciado da infra-política burguesa - poder soberano das megacorporações, Estado Social-Penal delinqüente, desinstitucionalização generalizada etc.

Concordo portanto com a periodização dos ciclos da luta social no Brasil na linha proposta pela Consulta Popular. Apenas acrescentaria - mas não é uma restrição, antes um esclarecimento - que, ao contrário da comunista, a hegemonia petista transcorreu primeiro no vazio econômico pós-desenvolvimentista, em seguida, em pleno ajuste neoliberal, e a ele se acomodando por sua vez, no papel de principal corretor no mercado da cidadania, como já foi denominado o conjunto de políticas sociais atreladas na forma de condicionalidades dos financiamentos do Banco Mundial. Acoplando esta perícia gerencial à ortodoxia econômica, na figura de um político carismático, surgiu um bloco de poder por enquanto imbatível e cujas transgressões, além do mais naturalizadas numa sociedade acossada por toda sorte de ilegalismos, são anistiadas ato contínuo.

A megapolarização entre ricos e pobres

De uns tempos para cá, a esquerda sobrevivente, não só no Brasil, mas no mundo, tem quebrado a cabeça para atinar com os conceitos que permitam repensar a megapolarização entre ricos e pobres que está convulsionando o planeta. De olho no laboratório brasileiro deste fenômeno, penso que seria o caso de inverter a equação. Sem deixar de ser real e terrível, essa megapolarização é administrada como uma convergência virtuosa de interesses, lucros extraordinários e cesta básica, rentismo e crédito consignado etc.

A "estatização"

O projeto lulista de poder, para um ambiente de retrocesso social e estagnação econômica, acrescentou uma terceira pata de sustentação desse bloco perverso, além é claro da empatia popular ampliada: o que não foi desmantelado nos setores organizados intermediários, foi por assim dizer estatizado, como as grandes centrais sindicais, sem falar que as estatais remanescentes e seus respectivos fundos estão se projetando como global players cujos lucros irrigam todo o sistema de parcerias. Este o tripé pós-desenvolvimento.

Devemos prestar mais atenção na burguesia econômica do que na gesticulação dos seus políticos. Escândalos?, reagiu Antonio Ermírio de Morais numa entrevista: são "intriguinhas", o resto está saindo muito melhor que a encomenda. Nestas circunstâncias, pergunto qual seria hoje a "opção brasileira" de uma esquerda social escaldada pela longa e desastrosa marcha através das instituições.

Fonte: http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=4655

2 comentários:

Unknown disse...

Muito incissivo! Ainda que ele tenha proposto uma ""outra campanha" que conjugue desobediência civil e mobilização de massa", não fica claro nada mais, o que é lógico que seria assim, não é trabalho de base e sim uma entrevista. Contudo lendo e caindo "em si" de quão perverso e bem articulado é nossa "Sociedade Privada" - termo meu - ficamos na expectativa de uma direção mais acertada quanto a Luta. Muitos pontos por falta de repertório (conhecimento prévio) não consegui ir mais a fundo na discussão, especificamente sobre a politica brasileira na ditadura, ao qual por bem conhecer ele sintetizou muito, ao ponto de muito se perder ao leitor menos históricamente situado. Já ouvi falar mas não sei o que é a "Consulta Popular", o que não ajudou muito. A falta de perspectiva politica e o avanço NeoLiberal permitem com que a sociedade se amedronte e não acredite na própria força de mudança, intrinceca ao Homem. No sentido mais social ou exencialista, a força de mudar e se mudar é totalmente tolhida pela ideologia, caucada num ritimo de vida desumano. E na Lufa-lufa segue cegos, surdos e mudos o Povo que deveria ser o cerne de todas as questões.

Leonel Camasão disse...

Fala nande
desistiu do blog?
acabei emcampando um também
http://www.paixaodedizer.blogspot.com
abraços