O “lulismo” de qualificativo jornalístico pejorativo ganhou ar de estatuto teórico. Hoje, lulismo é um conceito. Conceito que busca descrever e explicar, de modo geral, o período dos últimos oito anos da política brasileira.
O balanço desse período é urgente e necessário. Para quem participa eventual ou organicamente da esquerda brasileira pôde constatar a notável diferenciação valorativa em relação ao governo Lula de 2002 para cá. Sem descolar do plano mais superficial, esse movimento foi da esperança à desilusão, do cinismo a um projeto histórico de transformações viáveis e progressistas dentro da ordem capitalista. Do ponto de vista do movimento social isso significa apenas uma coisa: da defesa envergonhada do lulismo em 2006 a sua defesa apaixonada em 2010.
Esse período correspondeu também a um fortalecimento efêmero da esquerda revolucionária. Desde 2002, quando se anteviu o quanto os bancos seriam remunerados, até mais ou menos 2008, quando a crise econômica foi “vencida” por instrumentos de incentivo ao consumo e por uma orientação desenvolvimentista da economia, a esquerda revolucionária viveu um momento de fôlego parcial. Proliferaram análises sobre a origem e caráter do PT, surgiu mais um partido na esquerda brasileira, movimentos sociais de caráter autonomista e com sérias desconfianças à ordem institucional passaram a ter um espaço inaudito. Uma análise séria a respeito desse movimento que ensaiou rupturas a ordem é um capítulo à parte.
O fato é que o lulismo com políticas sociais emergenciais, seguido do consumo de geladeiras e carros, conquistou um largo setor da classe trabalhadora mais explorada. Isso ainda para permanecer no superficial. O fenômeno que se processou nesse interregno é bem mais profundo.
André Singer, com uma análise liminar e brilhante, aventou a hipótese do lulismo ser, efetivamente – e não distorcidamente –, uma representação de classe – representação no sentido de Marx –, mais propriamente de uma fração de classe, o subproletariado., isto é, aqueles que sobrevivem vendendo sua força de trabalho mas nem sempre encontram quem a compre Com as políticas sociais, o crédito consignado e o aumento real do salário mínimo, Lula conseguiu deslocar uma classe tradicionalmente ligada à direita política, em razão de sua fragilidade econômica e social, para o seu lado mais “reformista” – em oposição ao seu caráter, também, intrinsecamente conservador. Singer define o perfil ideológico do subproletariado como aqueles que desejam mudanças, mas que essas mudanças se processem de modo lento e gradual; o abalo da ordem, qualquer que seja, é sempre prejudicial a essa fração imensa da população que não possui direitos sociais – uma situação de desemprego é insuportável àqueles que não possuem seguro-desemprego; a estabilização da economia, o controle da inflação, é fundamental para uma classe sem poder de auto-organização. Essa dialética entre reforma e conservação (cuja distribuição de renda não prescinde e não contradita a remuneração dos bancos, por exemplo), seria resolvida por mudanças graduais, progressivas e mesmo lentas na ordem, que jamais ensaiariam quaisquer mudanças de corte radical. Os argumentos de Singer em suporte a essa tese são bem convincentes: desde o mapa eleitoral destacando a diferença profunda entre lulismo e petismo – este predominante nos centros industriais, aquele, no vocabulário jornalístico, nos grotões do Brasil –, o delineamento histórico do caráter do subproletariado como contrário a greves e até favorável ao uso de força militar na sua dissipação. A novidade do texto de Singer consiste ainda em mostrar um ator social até então razoavelmente invisível como, talvez, o mais poderoso da democracia brasileira. Tudo isso, é claro, tendo como pano de fundo a formação social subdesenvolvida que caracteriza o Brasil, ampliando em muito o poder dessa subclasse pouco expressiva no capitalismo avançado.
Além disso, o texto de André Singer retoma o que há de melhor na análise marxista. É possível encontrar os conceitos mais fundamentais como classe, fração de classe, força de trabalho, formação social etc. Além do uso dos conceitos, a inspiração fundamental Singer encontra na análise dos pequenos camponeses promovida por Marx no O 18 Brumário – o subproletariado é mesmo homólogo ao pequeno-camponês francês do século 19 em linhas gerais: não está economicamente ligado entre si (como o operário na linha de montagem) e é portanto incapaz da auto-organização, no que implica fazer-se representar por um Bonaparte qualquer, no caso brasileiro sem nenhuma conotação militar.
Em que pese isso, parece-me que Singer ainda, como apoiador do governo e em que pese seu profundo realismo político, mistifica o caráter social do lulismo considerando-o como um retorno do “popular” à política. Ao contrário, e aqui a hipótese de Ruy Braga do lulismo como “revolução passiva” ganha força, o lulismo parece antes de tudo uma profunda recomposição das elites sociais e políticas em vistas de uma conservação capitalista. É uma reforma conservadora, ou uma conservação que para continuar capitalismo acaba por reformar-se.
Ruy Braga mostra como o centro do lulismo se constitui no Estado, e aí ajuda a desfazer ilusões de uma esquerda que sem nunca ser anticapitalista sempre foi antineoliberal e, portanto, acreditou na diminuição real do papel do Estado ou que a contradição principal residiria entre capital e Estado – um evidente recuo a respeito das lições de Lênin no O Estado e a Revolução.
Diz Ruy Braga:
Contudo, parece-me meridianamente claro que o governo Lula conseguiu coroar a incorporação de parte das reivindicações dos “de baixo” com a bem orquestrada reação ao subversivismo esporádico das massas representado pelo “transformismo de grupos radicais inteiros”. Da miríade de cargos no aparato de Estado, passando pelos muitos assentos nos conselhos gestores dos fundos de pensão, pelas altas posições em empresas estatais, pelo repasse de verbas federais para financiamento de projetos cooperativos, pela recomposição do aparato de Estado, pela reforma sindical que robusteceu os cofres das centrais sindicais etc., o locus da hegemonia resultante de uma revolução passiva é exatamente o Estado. O fato é que o subversivismo inorgânico transformou-se em consentimento ativo para muitos militantes sociais que passaram a investir esforços desmedidos na conservação das posições adquiridas no aparato estatal.
Difícil discordar. Interessante pensar isso a partir disso da hipótese de Rudá Ricci ao, inspirado em Claus Offe, pensar o lulismo não apenas como “cooptação” – conceito fácil e conjuntural – dos movimentos sociais, mas como uma verdadeira estatalização – ou contra o neologismo, estatização – dos movimentos sociais. A reprodução material de variados movimentos sociais hoje depende do Estado que por meio da política de editais e de políticas (a um nível essencialmente corretas, mas em outro perniciosas) de assistência dão vazão a um certo tipo de reivindicações da sociedade. A velha diferenciação entre sociedade civil e Estado, sempre precária, ganha maior indistinção.
Vale notar ainda os autores, Virgínia Fontes à frente, que tentam pensar aspectos da política internacional brasileira como subimperialismo. Para isso não faltam indícios – mesmo que talvez parciais –, como a intensa participação do BNDES, Petrobrás e Itaipu na América Latina. BNDES, sobretudo, porque o financiamento de empresas brasileiras têm por fito sua instalação em outros países – seja na Bolívia, seja em Angola – ou o banco emprestando dinheiro a Guatemala, isto é, exportando capital. O fato é que o regozijo da diplomacia sul-sul preconizada por Marco Aurélio Garcia deve ser relativizada, prestando-se mais atenção às operações dos órgãos citados do que nas cordiais declarações dos governantes da América Latina.
Por fim, o livro “Os anos Lula”, grande projeto coletivo, apresenta a parcial mas imponente tentativa de uma avaliação geral do lulismo. Nesse caso, o interesse do livro reside menos pela síntese e mais pela análise pormenorizada dos diferentes temas – da educação à política econômica, do conflito agrário à política industrial.
O interesse de se fazer um amplo e correto balanço do lulismo reside no combate a uma versão da história que, a partir dessas eleições, nas milhares de mensagens eletrônicas disseminadas pelos apoiadores de Dilma, consiste na mistificação dos anos Lula. Se a crítica da direita merece ser solenemente ignorada, por não fazer jus ao mínimo de respeito aos fatos, a versão lulista não é muito melhor: a versão pai dos pobres, com dados seletamente colhidos e com depoimentos piegas de uma classe média com má-consciência, deve ser desfeita, sob pena de daqui a alguns essa versão, em oposição a alguma coisa pior, ser tomada como verdade.
Do fato de que Lula é um gigante – possivelmente o maior estadista desse país – e de que tratamos do governo com a maior e mais eficaz estratégia política já implementada, com as transformações superficiais jamais realizadas e mais sensíveis ao grosso da população, é um fato a ser lamentado e criticado por todo socialista autêntico. Resta ainda tudo por fazer, mas com um balanço bem orientado do lulismo ao menos não começaremos do zero.
H. Vivan