quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Perry Anderson crítico de Trotsky


Em 1976, Perry Anderson publicou o texto Considerações sobre o Marxismo Ocidental[1], no qual emitia um balanço crítico sobre a vertente Ocidental do marxismo – contraposta a um possível “marxismo soviético” – relevando seus aspectos positivos e desvelando suas inúmeras insuficiências teóricas e práticas. Essas limitações, segundo o Autor, oriundas principalmente de seu caráter tão-somente filosófico, fruto direto do desligamento da prática, deixando de desenvolver partes essenciais do pensamento marxista, como a Economia e a Política. Deixemos de lado a crítica ao marxismo “Ocidental” e nos atamos ao Posfácio do livro, no qual ele empreende a crítica ao marxismo clássico (anterior ao ocidental), concentrando-se nas obras de Marx, Lênin e Trotsky. De nossa parte, nos concentremos em Trotsky e nas três críticas que Anderson o faz.

1)

A teoria da “Revolução Permanente” elaborada por Trotsky demonstrou-se na Rússia: nenhuma revolução burguesa acontecera; a burguesia demonstrou-se frágil o bastante – devido a sua própria formação histórica – para pouco se manifestar em busca do poder; após a queda do czarismo não houve estabilidade capitalista, culminando, menos de nove meses depois, na Revolução de Outubro. Em suma, a Rússia apresentou as condições particulares as quais Trotsky já profetizara em 1905 e que permitiram que ela saísse do padrão clássico de desenvolvimento revolucionário[2] direto para a primeira Revolução Socialista da História. Anderson assinala que o problema ocorre quando Trotsky generaliza sua teoria para todo o mundo colonial e ex-colonial, como a única solução para a independência nacional, para a questão agrária e, em menor medida, para o estabelecimento de um parlamento. Então, segundo Trotsky, é impossível a uma burguesia nacional realizar essas três tarefas e cabe ao proletariado – na esteira do exemplo soviético – realizá-las em sua revolução legítima, não à reboque, como originalmente ocorre nessa espécie de revolução social. Todavia, o exemplo da Argélia contradiz a primeira afirmação, os eventos de 1953 na Bolívia contradizem a segunda e a Índia contradiz a questão da formação de um parlamento. Na Argélia, a Independência Nacional foi conduzida por uma grande frente nacionalista. Na Bolívia, uma solução – parcial – foi conseguida em relação à questão agrária – ainda que na efervescência dos “populismos” latino-americanos e com ajuda financeira dos Estados Unidos. Os 30 anos de existência do Estado Indiano comprovam a possibilidade da criação de um parlamento sem uma Revolução Proletária. Evidentemente há diversas nuances entre as contradições à teoria trotskista, todavia, certamente, escapam a sua categorização.

Se, de qualquer modo, defende-se a teoria da “Revolução Permanente” apela-se argumentando que nenhuma ex-colônia alcançou os três critérios ou que nenhuma delas alcançou uma verdadeira solução aos problemas em questão ou, até mesmo, o modo como aconteceram as conquistas que permitem caracterizar uma revolução burguesa. Esse tipo de argumentação é especialmente problemático: ou se faz da “Revolução Permanente” um truísmo (somente o Socialismo pode resolver toda e qualquer questão verdadeiramente) ou então faz do modelo de uma possível revolução burguesa que cumpra tais tarefas algo inexistente até mesmo nos países capitalistas desenvolvidos – a democracia burguesa foi conseguida nos mesmos altos custos tanto nos países de revolução burguesa “clássica” quanto na Índia. Isto é, defender a “Revolução Permanente”, nesses termos, é um bom exercício de escolástica.

Anderson conclui que a teoria da “Revolução Permanente” não foi demonstrada: “é pouco provável que uma fidelidade canônica a Marx como esta seja garantia suficiente de correção científica” – haja vista a expressão “Revolução Permanente” ter surgido num texto de Marx no ano de 1850. Cotejaremos a tese de “Revolução Permanente” de Trotsky com outra acepção na conclusão.

2)

Trotsky elaborou a teoria do Estado Fascista, em contraste com a do Estado democrático-burguês. Ainda que seus estudos sobre isso tenham sido maiores, por exemplo, dos que o de Lênin, ele nunca explicou sistematicamente a democracia burguesa. Anderson pensa que essa é uma das causas de seus posteriores erros acerca da política após a vitória do nazismo. Seus ensaios sobre a Alemanha pré-nazista propunham uma aliança antifascista com a pequena-burguesia (citando o exemplo de Kornilov, na Rússia). Na França, contudo, excluía a pequena-burguesia local (Partido Radical) na aliança antifascista, por ser uma organização do “imperialismo democrático”.

A princípio, Trotsky condena a Segunda Guerra Mundial como uma repetição do conflito entre os imperialismos. Desse modo, a classe operária não deveria optar por nenhum dos lados do conflito – ainda que um fosse fascista e o outro democrático burguês. A justificação disso era explicada através da idéia de que na década de 30 o mundo imperialista rumava para o desastre econômico, portanto a distinção entre os diferentes Estados capitalistas em guerra não tinha importância prática para a classe operária. Nas palavras de Anderson: “Os primeiros escritos de Trotsky sobre a Alemanha são a melhor refutação dos seus escritos posteriores sobre a guerra”. A concepção que subjaz a essas más avaliações é o “catastrofismo econômico”, uma idéia sempre corrente que cabe analisar mais adiante.

3)

Trotsky foi o primeiro marxista a desenvolver uma teoria da burocratização de um Estado Operário. De qualquer modo, Trotsky nunca tratou suficientemente das contradições que envolviam um “Estado Operário” que reprimia e explorava a classe que o sustentava e lhe dava nome[3].

A teoria de Trotsky, porém, não dava conta de explicar a emergência de Estados similares, nos quais ou não havia um operariado considerável (como na China) ou onde a revolução havia acontecido de cima para baixo (Europa Oriental). Pode-se atribuir duas causas para essa insuficiência: a) a importação do modelo de revolução através dos sovietes nem fazia Trotsky conceber outro tipo de revolução (com outros tipos de problemas, como a Chinesa e a Cubana); b) a própria noção de stalinismo que Trotsky elaborara: se o stalinismo é a degeneração da democracia proletária, então a China e os países da Europa Oriental não podem ser considerados stalinistas, haja vista não terem sofrido qualquer degeneração.

Outra insuficiência é a tese da “revolução política” para a derrubada da burocracia. O pressuposto dessa tese é a democracia que fora usurpada e que, portanto, poderia ser resgatada, através de uma revolução meramente política. Todavia, por exemplo, a China: o que poderia ser resgatado? Os sovietes? Certamente não, não havia o que ser recuperado do mesmo modo que na Rússia. A própria idéia de combate à burocracia pressupunha uma revolução de tipo russo. Porém, mesmo na Rússia, haviam poucas indicações sobre o que ser feito.

Conclusões

A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais[4].

Marx e Engels

Merleau Ponty[5] pensando o sentido da tese da “Revolução Permamente” e tendo em conta oposição na Revolução (e não contra), descobre que a tese do “Fim da História” é o absoluto autoritário – e anti-revolucionário – que perdura no pensamento marxista. Ora, afinal, como pensar em oposição se se concebe a Revolução como o próprio “Fim da História” (obviamente não como fim, mas como começo do fim, como sendo o ponto de partida para a construção do Socialismo e do Comunismo)? Se a Revolução é o “começo do fim” como pensar em me opor ao governo revolucionário sem me opor à Revolução? Na epígrafe do epílogo das As Aventuras da Dialética, Merleau-Ponty utiliza um trecho da correspondência do Comitê de Salvação Pública:

Hoje, o que importa não é revolucionar, e sim, montar o governo revolucionário.

É nesse instante que Merleau-Ponty repensa a Revolução Permanente:

(...) Ora, desde que se elimine completamente o conceito de fim da história, o conceito de revolução encontra-se relativizado. É este o sentido da “revolução permanente”: significa que não há regime definitivo, que a revolução é o regime do desequilíbrio criador (...).

Enquanto o Comitê de Salvação Pública destruía a dialética da revolução (cindia o processo ao meio), a “Revolução Permanente” a qual Merleau-Ponty alude, conserva a Revolução como o próprio regime, o processo como o próprio processo. Confere à Revolução um estatuto ontológico: a Revolução constitui o real. Do mesmo modo que a burguesia que revoluciona os meios de produção e a si mesma a todo instante, a Revolução Socialista continuaria se realizando na sua mudança interna. Merleau-Ponty só consegue fazer isso excluindo o conceito de “Fim da História”, somente assim é possível fazer da Revolução algo permanente. Antes disso, a Revolução era permanente até o momento de fracioná-la com o governo revolucionário.

Nessa perspectiva é que se pode pensar a “Revolução Permanente” como uma teoria à frente da categorização trotskista que explicitamos acima. Trotsky força a realidade e a comprime em seu esquema, que a História se encarregou de mostrar quão problemático é. Mesmo assim, foi Trotsky quem captou a Revolução na acepção merleau-pontyana:

Durante um período cuja duração é indeterminada, todas as relações sociais se transformam no curso de uma luta interior contínua. A sociedade não faz outra coisa senão mudar incessantemente de pele. Os transtornos na economia, na técnica, na ciência, na família, nos costumes e nos hábitos, realizando-se, formam combinações e relações recíprocas de tal modo complexas que a sociedade não pode chegar a um estado de equilíbrio[6].

Desta maneira pode-se reinterpretar o significado do próprio trotskismo: não mais como um conjunto de conhecimentos determinados, predições mundiais ou uma concepção de movimento revolucionário. Mas sim como uma consideração sobre a ontologia da Revolução, como a Revolução acontece e forma o próprio real.



[1] Anderson, Perry Considerações sobre o Marxismo Ocidental, Editorial Boitempo.

[2] Para horror do “marxismo” amarrado aos textos de concepção etapista atribuídos à Marx. Isso levou Gramsci, de modo muito são, a afirmar que os bolcheviques não eram marxistas: ser rigorosamente marxista (entendido como a “arte de leitura de textos de Marx”) na situação da Revolução Russa era lutar pela revolução burguesa que desenvolveria as forças produtivas, era ser menchevique.

[3] Certamente que havia uma impossibilidade para isso: a questão econômica, que fez da conquista do Socialismo mais que um problema de gerência ou de relação com o poder. A sincera – e desesperada – teoria de Preobrajenski sobre a “acumulação socialista [!] primitiva” confirma a tese da maturidade mais política do que econômica para o advento da Revolução de Outubro.

[4] Marx, Karl e Engels, Friedrich, Manifesto do Partido Comunista, Editorial Boitempo.

[5] Merleau-Ponty, Maurice, As Aventuras da Dialética, Martins Fontes Editora.

[6] Citado em As Aventuras da Dialética.

Um comentário:

Cascão disse...

Grande H..parabéns